THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Há alguns anos, enquanto completava a residência em pediatria, passei um mês trabalhando no berçário de recém-nascidos. Todos os dias, nossa equipe se reunia em um corredor estreito no quarto andar do hospital municipal e olhava através de uma vidraça alta para uma sala cheia de bebês. As enfermeiras os limpavam e trocavam, e então fazíamos nossos exames e escrevíamos nossas anotações.
Quando os bebês choravam, nós os segurávamos até que se acalmassem. A sala se enchia e se esvaziava, bebês entrando e saindo o dia todo, seus berços com rodas dispostos em fileiras aleatórias, como carrinhos de compras deixados em um estacionamento vazio.
Um dia, numa manhã devagar, com apenas uma mãe em trabalho de parto no quadro, fizemos a ronda com o pediatra responsável, decidimos quem faria as circuncisões, quem estava com muita icterícia e precisava iniciar a fototerapia. Uma enfermeira me deu um bebê para segurar e eu o equilibrei com uma das mãos enquanto verificava os sinais vitais com a outra.
Havia alguns exames de recém-nascidos para fazer, anotações para escrever. Almocei no refeitório e depois realizei algumas dispensas, observando os jovens pais radiantes (mas aterrorizados) com o pequeno embrulho em seus braços enquanto desapareciam pelo corredor e pelas portas do elevador. Meu responsável me deixou ir para casa mais cedo, então fui embora.
Atravessei o trânsito do início da tarde. Em casa comi um lanche e assisti Netflix no computador até meu marido chegar. Ele me perguntou como foi meu dia e eu disse que estava tudo bem. Então fui até ele para um abraço, caí em seus braços e chorei.
Parte de mim não tinha saído do berçário, e isso me arrasou, estar perto e ainda assim tão longe da paternidade. Embora eu estivesse abraçando meu marido, meus braços ainda sustentavam o peso do bebê que carregava poucas horas antes, forçando-me a considerar uma vida que nunca me permiti sentir que merecia.
Uma das razões pelas quais só me assumi gay aos 27 anos era porque não queria desistir da ideia de ter uma esposa. Aos 33 anos, aprendi a deixar isso de lado, a mulher sem rosto que carreguei em minha mente por tanto tempo. Eu a reconheço agora como uma personificação de tudo que eu corria o risco de perder se algum dia deixasse escapar meu segredo: um casamento e uma família tradicionais, incluindo a noção de paternidade, ou pelo menos como fui ensinado a percebê-la - a lógica do pátio de escola que ficou gravada em minha mente de que não pode existir um pai sem mãe, ou uma mãe sem pai, ou um filho sem qualquer um deles.
“Existem outras maneiras”, meu marido me disse um dia.
Falamos sobre crianças esporadicamente, durante os intervalos comerciais de “RuPaul’s Drag Race” ou entre mordidas de comida enquanto jantamos. Ele não pretende ser enigmático, mas, independentemente disso, sei o que ele está dizendo - temos sorte de ter opções. Mas é difícil para mim considerá-las seriamente. É tão fácil ficar sobrecarregado. O dinheiro, a ética, os advogados.
Eu me imagino entrevistando possíveis candidatas a barriga de aluguel e doadoras de óvulos - mais mulheres sem rosto assombrando minha mente - tentando extrair um genoma inteiro de uma conversa, avaliando características como faria com os ingredientes de um bolo, equilibrando um histórico familiar de diabetes ou glaucoma com olhos azuis ou castanhos, cabelos claros ou escuros, ser canhoto, autismo, altura, inclinação para matemática.
Às vezes tenho inveja da forma como a paternidade parece ter sido transmitida entre todas as pessoas que conheço, generalizada como um resfriado, e como, para muitos, a fórmula para ter filhos pode ser algo tão simples como o produto do sexo ao longo do tempo.
Meu pai sempre me conta quando conhece um casal gay que tem filhos - um estímulo gentil do avô que há nele - e sinto um certo peso quando ele termina de falar, um lembrete de como sou diferente, de todas as coisas em que cresci acreditando e que não me pertencem mais.
Ele percebeu esse peso uma vez, quando estávamos ao telefone, depois de me contar sobre um casal que havia passado recentemente pelo processo de adoção e ainda estava, um ano depois, esperando a chegada do filho. Depois de me explicar tudo, ele parou por um momento e depois disse: “Sabe, parece uma das coisas menos românticas do mundo”.
Antes de iniciar minha residência, perguntei ao meu terapeuta se havia algum problema em ser gay e pediatra. Ele pareceu magoado com a minha pergunta e eu imediatamente me arrependi de tê-la feito. Eu estava prestes a me assumir e não tinha certeza de muitas coisas, interpretando a vergonha como perversão, a atração como fetiche.
Eu costumava ser voluntário para dar aulas na escola dominical em minha igreja, e uma vez notei o pastor olhando para mim da porta enquanto eu carregava um menino até o topo de um escorregador de plástico. Tentei cumprimentá-lo, mas ele não disse nada. Ele apenas continuou olhando, os lábios pressionados como se estivesse tentando decidir alguma coisa.
Eu conhecia aquele olhar. Eu já o tinha visto antes e o tenho visto desde então, sempre em meio a um silêncio desconfortável, como se pudesse haver algo em mim, algo feio e desprezível, que de alguma forma todos, menos eu, pudessem ver.
Recebo menos desses olhares agora que sou pediatra, e talvez seja por isso que fiz medicina, pois minhas interações com outras pessoas estão agora estruturadas dentro dos limites da relação médico-paciente. Sempre fui bom com papéis, a afirmação de um trabalho bem feito proporcionando a validação que nunca senti que merecia. E as crianças muitas vezes veem mais papéis do que pessoas - pai, mãe, estranho, amigo - e talvez seja por isso que me sinto tão confortável perto delas.
Às vezes, sinto que sou um médico melhor pela minha capacidade de me concentrar mais no meu papel do que em mim mesmo, de ver a criança como um paciente, suas lágrimas e gritos como sintomas de uma doença, em vez de emoções de angústia. Mas há outros momentos, geralmente pequenos momentos num dia tranquilo, em que isso me atinge, o vazio por ter me ignorado por tanto tempo, momentos em que reconheço a vida diante de mim, um bebê recém-nascido pequeno o suficiente para caber em minhas mãos, e imagino um futuro onde algo tão precioso e tão amado possa se sentir em casa com alguém como eu.
Tem sido mais difícil para mim querer ter filhos desde que me tornei pediatra. É certo que minha perspectiva ficou distorcida. Fui treinado para esperar bronquiolite em cada esquina, pneumonia e sepse como ameaças constantes. Já vi peles serem perfuradas muitas vezes para drenos torácicos, trepanações, curativos e bloqueios nervosos, braços e pernas rechonchudos cutucados para coleta de sangue, fluidos e antibióticos.
Minha sobrinha e meu sobrinho são pequenos, ambos incontroláveis, e sempre preciso me adaptar quando os vejo, precisam muito pouco de mim, são muito capazes, não são frágeis.
Especialmente depois de iniciar minha bolsa em medicina de emergência pediátrica, a experiência me ensinou a antecipar desastres. Há uma piada corrente entre meus colegas que assume a forma de uma lista crescente de todas as coisas que nunca deixaremos nossos filhos fazer: comer uvas inteiras ou cachorro-quente, andar de quadriciclo e visitar um parque de trampolins.
É uma piada porque levamos isso a um extremo insondável, cada item é risível apenas quando está suficientemente distante da tragédia de onde veio, a lição aprendida tarde demais de que nada - ninguém - é verdadeiramente nosso.
Tenho minha própria lista que compartilho nesses momentos, apesar da minha ambivalência em relação à paternidade. É uma forma de ter filhos sem ter filhos, uma forma de me misturar, algo em que me tornei especialista. Uma parte de mim diz a mim mesmo que isso deveria bastar, esses breves vislumbres que tenho da vida dos meus pacientes, como se, assim mantidos, constituíssem algo real a ser valorizado.
Mas essa voz é apenas um eco daquelas que já ouvi sussurradas nas minhas costas muitas vezes antes, um acompanhamento para os olhares intrigantes que me dizem que o mundo ainda não decidiu se sou confiável.
Há alguns meses, conheci um menino que foi ao pronto-socorro por causa de dores ao urinar. Ele tinha 16 anos e quando expliquei a ele e a seus pais que teria de examinar seus órgãos genitais, ele hesitou.
“Ele é um médico; ele está apenas fazendo seu trabalho”, disse seu pai. E então, como que para tranquilizar ainda mais o filho, ele acrescentou: “Não é como se ele fosse gay”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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