PUBLICIDADE

Modern Love: Sobrevivendo com uma ajudinha do meu rebanho

Uma mãe solteira, sozinha com uma criança pequena em um país estrangeiro, encontra uma comunidade durante a covid - e então cria uma para os outros

PUBLICIDADE

Por Betsy Cornwell

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Meu ex era um péssimo marido, mas um bom treinador de cavalos. Quando nos conhecemos, ele tinha acabado de comprar um pônei por 50 euros que o vendedor jurava ser indestrutível. Três meses depois, ele o vendeu por 10 vezes esse preço como presente de Natal para uma criança.

PUBLICIDADE

Ele era mais gentil com os cavalos do que comigo. Ele teve mais sorte em treiná-los também. Suas tentativas de me dominar foram fáceis de ignorar no começo, mas ficaram mais fortes depois que nosso filho nasceu. No primeiro aniversário de nosso bebê, ele me disse que se eu não o obedecesse, ele me deportaria de volta para a América e manteria nosso filho na Irlanda.

Reagi como qualquer mãe animal ameaçada reagiria: peguei meu bebê e corri.

Depois de um breve contato com os sem-teto, nos mudamos para uma casa rural que eu mal podia pagar, mesmo com vários empregos. Em um campo do outro lado da estrada havia uma égua parda magra, com a crina caindo e a pele que ela havia mordido em carne viva. Você sempre podia ver o branco de seus olhos.

Uma das muitas coisas que meu ex me ensinou sobre cavalos é que um cavalo mantido sozinho em um campo nunca prosperará. Ele não vai dormir, vai parar de comer, vai até começar a arrancar os próprios pelos. Mas se você colocar qualquer outro animal de rebanho com ele (não precisa ser outro cavalo - pode ser uma ovelha, cabra ou burro), eles vão se dar bem.

Isso porque em um rebanho, os animais se revezam como vigias. Um animal vigia enquanto os outros descansam e comem. Um animal de rebanho sozinho, ou sozinho com seu filhote, está sempre atento ao perigo; não abaixará a cabeça o suficiente para comer muito ou se sentir seguro o suficiente para dormir profundamente.

'Um animal de rebanho sozinho, ou sozinho com seu filhote, está sempre atento ao perigo.' Foto: Brian Rea/The New York Tomes

Eu lamentava por ela. Eu também me sentia como ela.

Publicidade

Eu não conhecia meus vizinhos - e depois de aprender a temer meu marido, passei a ter medo de todo mundo também. Eu mantinha minha porta trancada e as cortinas fechadas. Mesmo depois que os longos dias de trabalho como mãe solteira terminavam e meu filho estava na cama, eu observava as janelas em busca de sombras inesperadas, olhos de predador.

Eu tinha uma ordem de segurança, a versão irlandesa da ordem de restrição, mas meu cérebro animal sabia que não era o mesmo que segurança real. Eu mal comia e dormia irregularmente, metade do meu cérebro alerta para o perigo. Os elogios pela minha perda de peso me davam vontade de gritar.

A essa altura, era abril de 2020 e a Irlanda estava passando pelo lockdown mais longo da Europa. Eu podia estar sozinha com uma criança pequena, mas todos os outros também estavam sozinhos em seus campos. Ao fazer reuniões pelo Zoom com familiares e amigos que não encontrava há anos, me senti menos isolada do que antes do lockdown. Apesar da sensação assustadora da Covid, eu não queria que aquilo acabasse.

Foi naquele espaço desencarnado que me senti segura o suficiente para começar a me abrir para as pessoas de novo. On-line, falei sobre minha dor pelo divórcio, as dificuldades de ser mãe solteira, minhas dificuldades financeiras. Eu vivia com medo do despejo e da separação de meu filho se meu ex conseguisse me deportar. On-line, não precisei explicar minha perda de peso ou a maneira como me encolhia com qualquer toque inesperado.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Eu me conectei com pessoas que passaram por coisas semelhantes, mas, mais importante, aprendi quantas pessoas estão dispostas a estender a mão com gentileza apenas por bondade. Amigos da faculdade dos Estados Unidos financiaram meu aluguel e o dinheiro da mercearia por um mês, quando não consegui pagar; eles pagaram pelo meu pedido de visto parental também.

Velhos amigos de todas as épocas da minha vida - assim como pessoas que eu não conhecia - estenderam a mão para me ajudar a sobreviver. A generosidade deles reavivou minha fé em mim e nos outros e me ajudou a imaginar um futuro melhor - um onde eu pudesse oferecer a mesma ajuda a outros pais solteiros que se sentiam sozinhos em seus campos.

À noite, quando meu bebê ou minha ansiedade me acordavam, eu me acalmava para dormir lendo folhetos de imóveis, sonhando com uma casa não apenas para nós, mas para outros pais solteiros, um espaço de residência com creche, onde pudéssemos nos revezar como vigias. Eu ansiava por dar a outros pais solteiros o que eu mais precisava: uma pausa na hipervigilância da solidão.

Publicidade

Em uma noite sem dormir, encontrei um lugar que pensei que poderia funcionar, uma antiga fábrica de malhas na costa oeste da Irlanda, com preço baixo porque estava no mercado há anos. O vendedor concordou com um esquema de aluguel com intenção de compra, mas disse que eu precisava pagar adiantado o aluguel de um ano inteiro.

Eu mal tinha o valor de um mês. Fui dormir naquela noite cheia de um anseio que chegava perto do desespero. Mas contei às minhas comunidades on-line sobre minha ideia e fiz algo que eles me ensinaram a fazer com seu amor - pedi ajuda. Então fui dormir.

Quando acordei, descobri que um rebanho de amigos e estranhos cuidou de mim e de meu filho enquanto dormíamos. Já havia vários meses de aluguel financiados e, em poucos dias, o ano inteiro estava coberto.

Depois que meu bebê e eu nos mudamos, passei os próximos dois anos financiando a compra da fábrica de malhas e reformando-a para receber convidados. Eu cortei arbustos, ergui cercas, esfreguei velhas paredes mofadas, limpei teias de aranha. E todos os dias eu falava on-line sobre meu sonho de uma casa de família que pudesse cuidar de outras famílias, e mais estranhos e amigos se juntavam para me apoiar.

Finalmente terminei o local na primavera de 2022, tendo aumentado todo o preço de compra. Meu rebanho manteve meu bebê e eu seguros, e era hora de eu oferecer essa segurança a outra pessoa.

No verão passado, hospedei minha primeira residente mãe solteira, uma mulher notável chamada Tawasul que veio para a Irlanda como refugiada do Sudão com seus dois filhos pequenos. Na ensolarada cozinha da fábrica de malhas, compartilhamos um forte chá irlandês e um café sudanês com especiarias de cardamomo enquanto conversávamos sobre abuso doméstico e imigração e a estranha tristeza de ver seus filhos crescerem em uma cultura diferente.

Para custear as residências, também comecei a oferecer o espaço no Airbnb. Alguns anos atrás, trancando a porta todas as noites contra meu ex-marido e vizinhos, eu nunca poderia imaginar ser corajosa o suficiente para dividir minha casa com estranhos.

Publicidade

Mas o engraçado é que esses estranhos fizeram com que eu me sentisse mais segura. Os mochileiros que ficam acordados até tarde fazem vigília sem nem saber. Os aposentados que acordam cedo para a balsa fazem o turno da manhã. Quase não falo com a maioria deles, mas sua presença me ajuda a respirar melhor porque sei que haveria testemunhas se meu ex aparecesse, especialmente agora que minha ordem de segurança expirou. Mas, na verdade, a sensação de segurança que tenho é mais primitiva.

Eu costumava fantasiar sobre colocar uma ovelha ou um burro no campo em frente à minha casa alugada para fazer companhia àquela égua parda. Decidi visitá-la quando podia, colhendo grama alta para ela, deixando meu bebê acariciar seu focinho aveludado. Freqüentemente, ela cochilava enquanto estávamos sentados lá.

Algumas semanas antes de partirmos para a fábrica de malhas, vi outro cavalo com ela. Eles não se uniram imediatamente, permanecendo principalmente nos cantos opostos do campo. Mas no dia da mudança, o pelo da égua já estava crescendo.

Nem toda pessoa que fica na fábrica de malhas é como uma alma gêmea. Mas a presença delas acalma meu corpo animal de uma forma mais profunda do que eu esperava.

Desde que compramos a casa, também comecei a conhecer meus vizinhos. Levei esses dois anos para ficar corajosa o suficiente, mas as recompensas dessa bravura são muitas: meu filho corre para cumprimentar seus colegas no parquinho e eu divido a custódia de um doce gato cinza com o casal do outro lado da rua.

E na semana passada, um vizinho idoso nos trouxe um presente inesperado: uma cabra.

Agradeci, mas pensei: “Meu Deus, o que vou fazer com ela?” Ou melhor, com eles: eu sabia que teria que arranjar um amigo para ela.

Publicidade

Até que a companhia de nossa cabra chegasse, meu filho e eu ficamos do lado de fora com ela por horas, alimentando-a com mingau de aveia, acariciando-a enquanto ela nos olhava com seus olhos suaves que pareciam uma caixa de correio. “Sinto muito por não sermos cabras”, eu queria dizer. “Mas eu juro - nós também somos animais de rebanho.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.