THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eu estava sentada entre meus pais num voo direto de quinze horas de Toronto a Seul.
Estava indo a Seul para trabalhar no projeto de um livro. Meu Airbnb tinha espaço suficiente para todos nós. Então, quando meus pais disseram, meio de brincadeira, que eles também iriam, não achei que fosse uma ideia péssima. Até chegar mais perto da viagem, claro. Sete semanas? Todo mundo junto?
“Estou nervosa por viajar com meus pais”, eu ficava falando para os meus amigos. “Controle suas expectativas”, eles me aconselhavam.
“Não se esqueçam de que vou para trabalhar”, eu disse aos meus pais. “Ah, não se preocupe”, meu pai disse. “Cada um vai fazer suas próprias coisas”. “Você acha que queremos passar o tempo todo com você?”, minha mãe acrescentou, rindo.
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Era a única coisa que me deixava à vontade: nosso entendimento de que, na Coreia, meus pais poderiam ser tão independentes quanto quisessem, sem nenhuma barreira linguística ou cultural.
A Coreia era o país deles. Lá, eles não precisariam de mim como tinham precisado no Canadá.
Eu tinha 10 anos quando imigramos. As crianças imigrantes sabem que o verdadeiro choque cultural no novo país é a forma como os pais passam a depender delas para enfrentar o mundo que até então lhes pertencia. Meus irmãos e eu não tivemos escolha a não ser abraçar a mudança: aprendemos um novo idioma, começamos a comer muito queijo e ganhamos novos nomes em inglês.
Quando o avião começou a acelerar na pista, meu pai abriu um sorrisão. “Uau, é isso aí!”, ele disse. “Estamos indo para a Coreia”. Eles tinham voltado uns anos antes, mas era a minha primeira vez em mais de 25 anos.
Dormimos debruçados nas bandejas dos assentos da classe econômica. Quando pousamos, estava caindo uma chuva torrencial.
Na manhã seguinte, na névoa do jet lag, minha mãe anunciou que a primeira coisa que eles queriam fazer era visitar o túmulo de minha avó paterna. Tínhamos conversado sobre visitar alguns parentes, mas ir ao túmulo da vovó não estava na lista, e isso me irritou. Estava começando: obrigações familiares usurpando meu tempo.
“Vamos lá dar um oi”, disse meu pai. “Vocês podem ir”, eu disse. “Eu não preciso ir”.
A primeira semana foi difícil. Estávamos de cabeça para baixo com a mudança de fuso horário e fiquei irritada com aquelas intervenções constantes de pai e mãe. Mas logo estabelecemos uma rotina: passávamos o dia separados e nos reencontrávamos para jantar.
Durante um desses jantares, meus pais deixaram escapar que não sabiam como se orientar no enorme sistema de transporte de Seul. Eu não entendi. Se eles conseguiam falar e ler coreano, por que não conseguiriam se virar sozinhos?
Baixei o Naver Map no celular do meu pai. “Aqui estão todas as opções para vocês chegarem lá”, eu disse. “Está vendo?”
“OK, entendi”, meu pai respondeu.
Só uns dias depois descobri que ele não tinha entendido nada, que ele e minha mãe estavam rodando pela cidade com base nos arquivos da memória – pegando ônibus para rumos familiares, não para locais precisos.
Mostrei o aplicativo ao meu pai uma segunda vez. “Este ponto aqui é você, e você tem quer ir para esse lado aqui. Se você vira o celular, o ponto gira com você”.
Na manhã seguinte, eu o vi na ruazinha em frente ao nosso Airbnb com o telefone na mão, praticando.
Eu atualizava meus amigos com stories do Instagram. “Como é estar entre o seu povo?”, um amigo me perguntou numa mensagem. “Hahaha, este é o meu povo?”, respondi, com o “Hahaha” escondendo minha irritação. A Coreia era o país dos meus pais e os coreanos eram o povo deles. Mas a questão ficou no ar. Quem era o meu povo?
Duas semanas depois do começo da viagem, minha mãe declarou que iriam ao túmulo da avó no dia seguinte. “Sem você”, ela disse. Eu não tinha me dado conta de que eles ainda não tinham ido. Ansiosa para passar um dia sozinha em casa, disse a eles que era uma ótima ideia.
Mas, no dia seguinte, eles decidiram não ir. O túmulo da vovó fica em Paju, perto da fronteira com a Coreia do Norte, e a rota do ônibus era muito complicada. “Talvez não seja um problema não ir desta vez”, disse minha mãe ao meu pai no café da manhã. “Ela vai entender”. Meu pai concordou. Bebi meu Nespresso sem dizer nada.
Enquanto meu pai tomava banho, minha mãe me chamou de lado. “Ele não vai falar, mas seu pai gostaria muito que você fosse ao túmulo da vovó”. “Por quê?”, perguntei. “Lembra que dissemos que cada um iria fazer suas próprias coisas?”
“Ele quer mostrar a ela como você cresceu. Quer exibir você”
Eu dei risada, mas fiquei profundamente comovida. Resolvi abandonar meu dia de trabalho e acompanhar os dois.
“Precisamos de flores”, disse meu pai quando chegamos perto do cemitério. Imaginamos que haveria um vendedor de flores na entrada.
Não havia.
Colhi algumas flores silvestres de cores vivas no estacionamento e as amarrei com uma folha comprida. Isso me lembrou da minha irmã e dos colares de trevo que fazíamos quando éramos crianças.
Meus pais se ocuparam arrancando ervas daninhas da lápide de granito, que tinha uma combinação dos alfabetos Hangul e Hanja na frente e atrás. “Seu nome está atrás”, disse meu pai. “Está vendo aqui?” Olhei e lá estava meu nome coreano gravado ao lado dos nomes de meus irmãos e primos. Foi estranho ver nossos nomes na lápide – todos nós, os vivos e os mortos, conectados.
“Tire uma foto”, disse meu pai ao lado do túmulo com minha mãe. Olhando para o rosto deles através das lentes do iPhone, senti uma súbita onda de ternura.
Nas sete semanas em que estivemos na Coreia, meus pais e eu conseguimos ver todos os parentes, até mesmo meu tio em Chuncheon, a última cidade onde moramos antes de virmos para o Canadá. Meu tio nos levou pela estrada da memória até nosso antigo apartamento. Parecia abandonado. Meu pai e eu demos uma volta rápida pelo prédio, tentando conciliar a memória do passado com o presente.
De volta a Seul, minha mãe notou que o apartamento em Chuncheon era o último lugar onde minha avó viveu. Eu tinha esquecido, mas, assim que ela falou, eu me lembrei: o quarto da vovó ficava bem ao lado da entrada. Toda vez que eu chegava da escola, ela batia por dentro com a bengala e perguntava: “Quem é?”
“É Sun-kyeong”, eu respondia. Eu abria a porta e a via sentada no chão, sua bengala me orientando para alguma tarefa. “Vá colher as folhas de dente-de-leão lá fora”, ela disse certa vez, apontando para a janela. Eu me lembrei do dia em que voltei da escola e ninguém bateu para perguntar quem eu era. E pela porta entreaberta vi que o quarto dela estava vazio.
Antes que percebêssemos, a viagem tinha terminado. De volta em casa, em Toronto, meus amigos perguntavam como tinha sido na Coreia. “Incrível”, respondi todas as vezes. Se perguntassem por quê, eu não sabia bem como explicar.
“Comida boa?”, eles perguntavam. Mas não era isso. “Você conseguiu trabalhar?”, eles queriam saber. Também não era isso.
Não sabia como contar que a viagem tinha sido incrível por causa da minha mãe e do meu pai. Que percebi como fazia parte deles e eles faziam parte de mim. Que não pertencemos a línguas ou países. Que um dia, quando meu pai e eu pegamos um táxi depois de um jogo de beisebol, ouvi o motorista perguntar a ele: “Ah, você é estrangeiro?” E meu pai respondeu: “Sim, do Canadá”. E não consegui mais esquecer essa resposta.
Eu não sabia como dizer aos meus amigos que, quando estamos no Canadá, somos da Coreia e, quando estamos na Coreia, somos do Canadá. Somos sempre de outro lugar.
Certo dia, perto do final da viagem, meus pais e eu fomos a Insadong, e meu pai pegou outro caminho para fazer suas próprias coisas. Mandei uma mensagem para ele informando o local onde ele deveria se encontrar comigo e com minha mãe. E depois telefonei, só para garantir.
“Você sabe como chegar aqui?”, perguntei. “Sei”, ele disse. “Não se preocupe”.
Quando ele nos encontrou exatamente onde deveria, fiquei tão orgulhosa que tive de desviar o olhar para não chorar.
Minha avó morreu apenas quatro meses antes de nos mudarmos para o Canadá. Tínhamos sido aceitos para a residência permanente, mas ela estava muito frágil para fazer a viagem. Meus pais não sabiam o que fazer e não contaram a ela que estávamos nos mudando.
Mas ela sabia.
“Diga aos seus pais, não se esqueçam de me levar”, ela ficava dizendo para mim e para meus irmãos. “Não se esqueçam de me levar”.
Espero que ela saiba que não vou esquecer. Que nós a levamos. Que talvez tudo o que temos seja uns aos outros.
Susan Yoon é escritora de livros infantis e autora de Waiting for Tomorrow. Ela mora em Toronto./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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