Erykah Badu sempre foi chefe, mas agora está mais para CEO. Quando a pandemia de coronavírus interrompeu os shows e a indústria da música se esforçou para se adaptar, a iconoclasta cantora e compositora de neo-soul criou um novo modelo artístico e de negócios, desenvolvendo sua própria rede interativa de streaming menos de duas semanas depois que os Estados Unidos começaram a fazer lockdowns. "Faço turnê oito meses ao ano, há 22 anos. Foi assim que ganhei meu dinheiro", disse Badu.
A cantora tinha família para cuidar e uma equipe que está com ela há duas décadas. Por conta disso, criou uma megaprodução interativa em sua casa (The Quarentine Concert Series: Apocalypse, Live From Badubotron), cobrando US$ 1 dos fãs que queriam vê-la. Em seguida, fez isso mais duas vezes, cobrando um pouco mais a cada vez – três apresentações transmitidas em tempo real, cada vez mais elaboradas, no espaço de um mês, com mudanças de figurino e iluminação.
Os fãs votaram nas músicas do repertório e até em que sala ela se apresentaria. No último show, ela e seus músicos pareciam estar dentro de bolhas claras e gigantes. "Todo dia e toda noite eu trabalhava, me movimentava, experimentava; aprendia rapidamente com meus erros e os corrigia", afirmou a artista. Segundo uma porta-voz, mais de cem mil pessoas assistiram aos eventos. E agora ela nem sente falta de estar na estrada: "Um pedacinho de mim morre toda vez que preciso sair de casa."
O processo energizou Erykah Badu, de 49 anos, mãe de três filhos, que vive em Dallas, no Texas, onde também é uma doula (assistente de parto que acompanha a gestante ao longo da gravidez). "De repente, ressuscitei, com novas ideias, pensamentos e lançamentos de coisas que eu nem sabia que tinha", comentou.
Desde fevereiro, ela já vinha se ramificando com o site Badu World Market, que oferece mercadorias e uma comunidade centrada nas mulheres. Em seguida, planeja lançar lá uma linha de boticário e está fazendo aulas para aprender a codificar. Em uma recente entrevista em vídeo, de sua sala, Badu descreveu sua visão para uma nova empresa de transmissão ao vivo. Abaixo, alguns trechos editados da conversa.
Como você teve essa ideia?
A primeira coisa que tivemos de entender foi: o que sou, além de uma artista que faz turnê? E rapidamente descobri que eu era muitas outras coisas. Tudo veio para mim de forma simples e rápida, como se estivesse baixando o programa da Matrix.
Explique como é a configuração técnica.
Eu não queria simplesmente colocar um telefone em um tripé. Tive de manter minha equipe empregada e estimulada. Eu queria que o usuário pudesse escolher interativamente quais músicas cantaríamos. Quando você está no estúdio, aperfeiçoa um momento – você pode voltar e consertá-lo. Mas, quando está fazendo algo ao vivo, está criando um momento e entregando-o de uma só vez, e eu queria que o público sentisse que seu dinheiro não o colocou apenas no show, mas também ajudou a criar o momento. Tive de arranjar um caminhão para ampliar a internet da minha casa.
Todos os vizinhos ficaram com internet de alta velocidade por algumas semanas por conta disso. Eu era a diretora, a produtora, a diretora musical, a codiretora técnica e também o switcher de vídeo. Ficava com um pequeno iPad ao meu lado para mudar o ângulo da câmera. Usamos quatro câmeras. A câmera "A" ficava bem à minha frente. A "B", atrás de mim, em um tripé que podia girar para a esquerda e para a direita. A "C", bem acima de todo o grupo, com uma lente olho de peixe, e ainda tinha uma nos músicos e cantores.
Posso dizer que você gosta de dirigir
Dirijo desde os três anos. Primeiro, foram os ursinhos de pelúcia. Depois, as crianças da vizinhança. Depois, as crianças da igreja.
Qual é o status do seu plano para iniciar uma empresa de transmissão ao vivo?
Meu projeto de empresa de transmissão ao vivo está em andamento. É ambicioso, mas acho que consigo. Acho que sou capaz de ajudar os artistas a construir uma plataforma muito semelhante à minha, em que tudo está lá. Estamos direcionando todo o tráfego para nossas redes sociais, para nossas salas de bate-papo, para nossos produtos e para nossa atividade artística, seja a performance ou a comédia, a arte visual ou a moda.
Não precisamos abandonar nossos outros veículos de comunicação social, mas podemos incorporá-los ao nosso mundo para facilitar a vida do usuário. Também estou tentando convencer o usuário ou o público de que não há problema em pagar diretamente ao artista. As pessoas estão tão acostumadas a usar os serviços de transmissão ao vivo para fazer isso, e só recebemos alguns centavos [dos serviços]. Mas também estamos vivendo numa época em que o capitalismo é um dos inimigos. Portanto, você deve ter muito cuidado para não se tornar algo que não pretendia se tornar.
Você disse que o valor mínimo que estava cobrando inicialmente não é sustentável. Você chegou a uma maneira melhor de definir o preço?
Estou pensando nisso, e estou buscando energia para me sentir confortável com isso. Talvez uma taxa mensal seja melhor do que uma taxa única. É muito importante estarmos focados e organizados agora, e também termos lugares para aliviar os sentimentos de culpa e os sentimentos de privação, de dor e de distância. E muitos deles são aliviados por intermédio da música. Criar a vibração certa no mercado vai ajudar as pessoas a entender por que isso é valioso para nós.
Recentemente, você fez um show ao vivo na casa de Dave Chappelle. Provavelmente ainda vão se passar muitos meses até que os shows regulares voltem a ser apresentados. De que aspectos da turnê você sente falta?
Não senti falta. Sempre quis me apresentar da minha cama, em casa. Sou, provavelmente, a artista mais preguiçosa de Dallas. Eu nunca quis fazer as malas, viajar, pegar as bagagens e dar entrada no hotel: "Qual é a senha? Qual é a rede?" Você se cansa depois de fazer isso por anos e anos, sabe?
Gosto do momento em que o público e o artista se tornam um organismo vivo, respirando juntos, quando a banda e eu estamos na mesma sintonia. Sinto falta dessa sinergia e dessa energia trocada com o público. Mas encontrei uma nova maneira de expressar isso, e ela não substitui a primeira. Apenas evoluiu para outro lugar.
Você sente que está atingindo um patamar diferente com esse projeto?
Para mim, como uma pessoa criativa, sim. Não há nada como seres humanos respirando ao vivo, o contato visual, ouvir sua voz reverberar na parede de trás do palco, voltar até você e atingir sua jugular. Não há nada assim. Não há nada como discotecar em uma balada e ver o batimento cardíaco de todos ali aumentar quando toca uma música de nossa infância que amamos, ou quando um convidado sobe ao palco e todo mundo fica louco porque não estava esperando vê-lo.
Mas também não há nada como realizar, filmar, criar e entregar algo no mesmo momento. E, quando você consegue fazer isso com sucesso, todo mundo na sala tem de estar no ponto – todos os operadores de câmera, todos os músicos, eu como a líder da banda e a diretora. Estamos realizando um videoclipe ao vivo de duas a três horas, e tudo precisa estar no ponto. Todo mundo solta o ar depois que acaba, e ficamos todos quietos. Conseguimos.
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