No dia 9 de julho de 1845, dois meses depois de partir de Greenhithe, na Inglaterra, o subtenente John Gregory escreveu uma carta para a esposa, da Groenlândia, em que falava das baleias e dos icebergs que via pela primeira vez.
Gregory, que nunca havia estado no mar antes, viajava a bordo do HMS Erebus, um dos dois navios que participaram da expedição de Sir John Franklin em 1845 para a descoberta da lendária Passagem do Noroeste, uma rota marítima através do Ártico canadense que serviria de rota comercial até a Ásia.
Mas aconteceu o desastre. O Erebus e o HMS Terror, que no total transportavam 129 pessoas, ficaram presos no gelo no Victoria Strait, ao largo de Prince William, no atual território canadense de Nunavut. Em abril de 1848, os sobreviventes decidiram ir a pé até um posto comercial no território canadense. (Franklin e cerca de outras 20 pessoas já haviam morrido.)
Os sobreviventes acabaram sucumbindo às brutais condições da nevasca e de temperaturas abaixo de zero. A expedição condenada permaneceu na imaginação do público – inspirando as histórias de ficção de Mark Twain e Julio Verne, e, mais recentemente, a série da AMC The Terror de 2018 – inspirada em parte nos boatos de que a tripulação recorrera ao canibalismo.
O naufrágio permaneceu intocado até 2014, quando um veículo submarino controlado remotamente captou a silhueta do Erebus perto da King William Island. Dois anos mais tarde, a indicação de um caçador inuit local levou à descoberta do “Terror” nas águas gélidas de Terror Bay.
Os descendentes de John Gregory só souberam do seu destino até mais de 175 anos depois da carta que ele enviou para a esposa da Groenlândia. Alguns marinheiros foram identificados depois de serem encontrados em túmulos marcados. Mas recentemente, o DNA de Gregory e uma amostra de um descendente nascido em 1982 combinaram, o que o tornou o primeiro explorador daquela viagem cujos restos mortais foram positivamente identificados graças ao DNA e a análises genealógicas – processo semelhante ao utilizado nos últimos anos para identificar suspeitos de assassinato e vítimas de casos já encerrados.
Na semana passada, Jonathan Gregory, que reside em Port Elizabeth, na África do Sul, recebeu um e-mail dos pesquisadores no Canadá confirmando que o teste da covid que havia enviado o confirmou como descendente direto de John Gregory.
Jonathan Gregory ouvira falar da relação da sua família com a expedição, mas até o resultado do exame pelo DNA, “na realidade, tudo não passava de teoria”. (Embora seja conhecido como Joe, a semelhança entre os seus nomes “faz sentido”, disse Gregory.)
Uma parente que mora na Columbia Britânica, e que Gregory nunca conheceu, escreveu para ele no Facebook em 2019, depois de ver uma solicitação dos pesquisadores pedindo aos descendentes de marinheiros da expedição que enviassem amostras de DNA. Ela não era uma descendente direta, mas Gregory sim.
“Eu mergulhei de cabeça”, ele disse em uma entrevista por telefone. “Para nós, isto é história”.
Douglas Stenton, professor da Universidade de Waterloo e pesquisador do projeto, disse que a equipe, que incluía pesquisadores da Lakehead University e da Trent University, iniciaram concentrando-se na documentação dos locais e na recuperação de novas informações sobre a expedição. Mas em 2013, passaram a se interessar pelos restos humanos, na tentativa de “identificar alguns destes homens que efetivamente se tornaram anônimos na morte”.
“É realmente a história de um feito humano em um dos lugares mais difíceis do mundo,” disse Stenton, “que resultou em uma perda catastrófica de vidas, por razões que ainda desconhecemos”.
As circunstâncias que levaram à morte da tripulação ainda não foram esclarecidas. Os pesquisadores continuaram a juntar os indícios sobre o fracasso da expedição a partir da descoberta de artefatos ao longo dos anos.
Os restos mortais de Gregory foram escavados em 2013 na King William Island, a cerca de 80 quilômetros ao sul do local onde os navios foram abandonados. Muito provavelmente, ele morreu um mês depois de deixar os navios, disse Stenton – uma jornadaque “não foi necessariamente uma viagem aprazível, em nenhum sentido da palavra”. Gregory teria entre 43 e 47 anos quando morreu.
Stenton disse que foi um alívio pôr finalmente um nome a um dos marinheiros – e um rosto, porque os pesquisadores conseguiram criar uma reconstituição facial de como Gregory poderia ter sido – porque os detalhes sobre a expedição “continuaram indefinidos por nada menos que 175 anos”.
Nos últimos oito anos, disse Stenton, os pesquisadores da equipe tinham “muita esperança” de poder comparar uma amostra de um descendente vivo a um marinheiro do pool de DNA que haviam coletado dos restos mortais. As primeiras 16 amostras que receberam não produziram uma combinação, o que tornou o resultado positivo no caso de Gregory “muito gratificante”, afirmou Stenton.
Embora a identificação não tenha mudado o relato da expedição, e acrescentou: “Quantos mais indivíduos pudermos identificar, talvez cheguemos a alguma informação útil que nos leve a uma melhor compreensão” do que aconteceu com os exploradores.
Ele agradeceu às famílias que enviaram o DNA, quer combinassem quer não, acrescentando que estava satisfeito por conseguir dar à família de Gregory os detalhes dos últimos anos do marinheiro. Segundo ele apurou, Gregory não estava sozinho ao morrer, porque no mesmo local foram encontrados os restos de outros dois marinheiros”.
“Há uma estranha sensação nisso todo”, disse Jonathan Gregory, “mas levando em conta todo o que aconteceu, acho que esta questão está encerrada”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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