THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Há milhões de anos, este deserto no Peru era um local de encontro de criaturas marinhas fantásticas: baleias que caminhavam, golfinhos com rostos de morsa, tubarões com dentes do tamanho de um rosto humano, pinguins de penas vermelhas, preguiças aquáticas.
Eles se reproduziam nas águas calmas de uma lagoa rasa protegida por colinas que ainda hoje envolvem a paisagem. Por fim, mudanças tectônicas separaram a terra do mar. Há mais de 10.000 anos, as pessoas chegaram. Com elas vieram a arte, a religião e a arquitetura monumental.
Os pesquisadores reuniram esses instantâneos do passado distante a partir dos ossos e tumbas encontrados espalhados na Bacia do Pisco, uma espessa camada de sedimentos ricos em fósseis que se estende por 200 milhas quadradas de terras áridas e corredores ribeirinhos entre a Cordilheira dos Andes e a costa do Pacífico do sul do Peru.
As descobertas na região ocorreram a um ritmo acelerado nas últimas décadas, com pelo menos 55 novas espécies de vertebrados marinhos descobertas até agora. Em agosto, os paleontólogos revelaram o que pode ser a descoberta mais notável da região até agora: Perucetus colossus, uma baleia semelhante a um peixe-boi, agora considerada o animal mais pesado que já existiu.
“Parece haver sempre algo novo vindo do Peru”, disse Nicholas Pyenson, paleontólogo e curador de fósseis de mamíferos marinhos da Smithsonian Institution.
Região especial
Não é apenas a abundância de fósseis que torna a região especial, disse ele. “Em muitos casos, refletem espécies que não vemos em nenhum outro lugar e não sabemos realmente o porquê.”
Mas os paleontólogos no Peru alertam que esta riqueza única de ossos está ameaçada por uma das formas mais insidiosas pelas quais o país perde o seu patrimônio natural e cultural: o desenvolvimento não planejado.
Na cidade agrícola de Ocucaje, porta de entrada para a Bacia do Pisco, o deserto está rapidamente sendo transformado em lotes de terra para projetos imobiliários, assentamentos precários e granjas. Novas estradas cortam faixas de deserto e dunas de areia varridas pelo vento. Ao longo deles, foram erguidas barreiras de lama e postes com arame farpado.
“Estamos sendo dissecados”, disse Laura Peña, prefeita de Ocucaje, enquanto inspecionava demarcações retangulares na areia nos arredores da cidade. “Aqui era um pampa aberto. Não havia estradas antes. Havia apenas a terra. Nos últimos anos, tudo foi cercado.”
Aconteceu tão rapidamente, disse Peña, que ela ainda está tentando descobrir quem possui o quê e quanto disso é legal. Como muitos prefeitos de cidades pequenas, Peña não possui um mapa de posse de terra do seu distrito e luta para acompanhar as decisões tomadas pelos governos provinciais e regionais.
Muitas das subdivisões contêm fósseis ou locais pré-colombianos que deveriam ter sido declarados proibidos há anos, disse ela.
O crescimento descontrolado tem sido um desafio para a preservação das antigas ruínas do Peru, especialmente ao longo da costa árida, onde as civilizações pré-colombianas floresceram nos vales dos rios hoje ocupados pelos peruanos.
Em Ocucaje, Manuel Uchuya, 73 anos, vive em uma comunidade no topo de um centro cerimonial da cultura pré-colombiana de Paracas. Há mais de um século, o arqueólogo alemão Max Uhle desenterrou várias múmias do local com pelo menos 1.000 anos de idade e que estavam embrulhadas em elaborados pacotes funerários, incluindo uma com motivo de serpente e um capacete de penas de arara.
“Não tínhamos outro lugar para ir”, disse Uchuya.
O local já havia sido saqueado quando ele e sua esposa construíram um barraco em um pequeno terreno para se aposentarem, há cerca de 20 anos, disse ele. Na esquina do pequeno barraco, os restos de uma parede de adobe pré-colombiana ainda estavam de pé, e cacos de cerâmica, espigas de milho e pedaços de tecidos avermelhados cobriam o chão.
Devido ao enorme déficit habitacional do Peru, os bairros tendem a ser construídos primeiro e legalizados depois. Nos últimos 15 anos, 90% do desenvolvimento urbano aconteceu informalmente ou fora da regulamentação, disse Andres Devoto, advogado.
À medida que a terra disponível diminuiu na região árida entre os Andes e o Oceano Pacífico - onde se concentra a maior parte da população e da atividade econômica do Peru - a especulação estimulou reivindicações de assentamentos em áreas cada vez mais improváveis.
Mario Urbina Schmitt, paleontólogo radicado na capital, Lima, que emergiu como o caçador de fósseis mais prolífico do Peru, disse que ficou chocado quando regressou à região em 2021, após os confinamentos da covid-19. Embora muitos peruanos tenham passado o ano sob rigorosos confinamentos, as reivindicações de terras e os possíveis assentamentos precários explodiram.
“É como ir ao Grand Canyon”, disse Urbina Schmitt, “e de repente ver placas por toda parte que dizem: ‘Isto é meu!’”
Os arqueólogos conhecem Ocucaje como uma encruzilhada de civilizações antigas - um lugar onde os povos Paracas e Nazca criaram figuras de animais e guerreiros nas encostas e os Incas abriram um caminho para ligar a região ao seu império.
Os paleontólogos consideram a região um dos melhores lugares do mundo para investigar a evolução dos animais marinhos. A quase ausência de chuva - Ocucaje recebe em média 1 milímetro por ano - preservou até a cor vermelha das penas do pinguim Inkayacu, de 1,5 metro de altura, e dos filtros semelhantes a pelos na boca das baleias.
“Está além do Patrimônio Mundial da Unesco em termos da extensão da sua abundância”, disse Pyenson, comparando a área a Wadi al-Hitan, um célebre local de fósseis marinhos no Egito. “É como se tivéssemos um Wadi al-Hitan de muitos períodos de tempo diferentes.”
Grande quantidade de fósseis
Urbina Schmitt disse que mesmo depois de quatro décadas explorando o deserto de Ocucaje, ele ainda encontrou tantos fósseis que pôde se dar ao luxo de ser exigente.
“Qualquer um pode encontrar uma baleia normal”, disse ele. “Elas estão por toda parte. Eu não conto essas. Eu quero as novas. As estranhas”.
Há uma década, ele avistou uma vértebra da Perucetus incrustada na encosta de um penhasco. A revelação da nova espécie, publicada no mês passado em um artigo na Nature do qual foi coautor, foi comemorada no Peru.
Autoridades do governo no Peru falam há pelo menos uma década sobre a criação de algum tipo de parque em Ocucaje. A ideia mal avançou, em parte devido a uma disputa sobre qual instituição estatal deveria liderar o esforço.
O Instituto Geológico, Mineiro e Metalúrgico, uma agência do Ministério de Energia e Minas, tirou do Ministério da Cultura a autoridade para supervisionar a proteção fóssil em 2021. Mas ainda está revendo quais áreas proibir e planeja reescrever a proposta do Peru para adicionar a região na lista do Patrimônio Mundial da Unesco, disse César Chacaltana, seu diretor de paleontologia.
Enquanto isso, pelo menos quatro projetos imobiliários estão anunciando terrenos para construção de casas no deserto de Ocucaje. Em vídeos nas redes sociais, cita-se a descoberta da Perucetus como motivo para investir na região. Outro promove o motociclismo no deserto.
Nenhum deles solicitou licença para certificar, antes do início da obra, que não há restos fósseis em seus locais, conforme exigido por lei desde 2021, disse Chacaltana.
Peña suspeita que pelo menos algumas das áreas recentemente demarcadas em Ocucaje sejam obra de traficantes de terras que organizam ocupações ilegais para se apropriarem de terras públicas.
“Não sabemos o que eles querem em Ocucaje”, disse ela. “Não há água aqui. Só recebemos água uma vez por semana.”
De acordo com as leis peruanas que visam proteger os pobres sem terra, quem realiza ocupações não pode ser facilmente expulso de terras públicas desocupadas e pode eventualmente solicitar às autoridades títulos de propriedade e serviços públicos.
Mas grupos criminosos estão explorando essas proteções. Eles podem pagar às pessoas para colocarem barracas em terrenos baldios para exigir títulos de terra que possam posteriormente vender ou reaproveitar, ou podem usar violência ou subornos para obter aprovações das autoridades locais.
Os ventos que açoitam as dunas do deserto ainda escondem e revelam pistas sobre o passado antigo; é preciso ter olhos treinados para vê-los. Paleontólogos e arqueólogos temem que o desenvolvimento descontrolado em Ocucaje possa destruir descobertas potencialmente valiosas antes de serem conhecidas.
“Você pode ficar ali, dia após dia, fazendo seu trabalho, e não ver um geoglifo por causa da forma como o sol atinge a paisagem”, disse Lisa DeLeonardis, historiadora de arte da Universidade Johns Hopkins. “E então, quando você vê, todas as rochas se alinham e você percebe, ah, há um geoglifo ali.”
Antigamente, pensava-se que os geoglifos - desenhos em grande escala feitos raspando o solo ou alinhando rochas - tinham sido feitos apenas pela civilização Nazca, cujas figuras famosas se estendem pelo deserto cerca de 80 quilômetros ao norte. Mas os geoglifos anteriores dos Paracas são cada vez mais encontrados nas colinas de Ocucaje e nos vales próximos, disse DeLeonardis.
Uma moradora, Mirtha Mendocilla, 28 anos, lembrou-se de ter levado o filho e os amigos dele para ver um geoglifo que os moradores locais avistaram não muito longe da cidade - apenas para encontrar cercas e uma placa que dizia “Propriedade privada”.
“Que propriedade privada?” Mendocila disse. “Este é o nosso patrimônio. Temos que recuperá-lo antes que seja arruinado.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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