Nova geração redescobre Tincoãs e Mateus Aleluia, um dos mais importantes músicos negros do País

Depois de finalmente lançar ‘Canto Coral Afrobrasileiro’, gravado há 40 anos, canções de Aleluia e companheiros caíram mais uma vez no gosto do público, principalmente dos mais jovens

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Por Carlos Albuquerque

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em maio, no Armazém Utopia, às margens do antigo porto do Rio de Janeiro, três mil pessoas lotaram a abertura do Back2Black, festival dedicado à cultura negra. No palco, uma pessoa toda vestida de branco, violão na mão. A voz imponente do barítono Mateus Aleluia - o único integrante ativo da banda baiana Os Tincoãs, reverenciada por suas canções baseadas na mitologia iorubá e em harmonias vocais celestiais - ecoou pelo recinto inteiro. Ele cantou sobre pássaros, cachoeiras e seres místicos. Mas também sobre a opressão, o sofrimento e a dor provocada pelo racismo.

Mateus Aleluia, único integrante dos Tincoãs na ativa. Foto: Vinicius Xavier/Divulgação

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Ao interromper seu canto subitamente e abrir os braços, a multidão entendeu o sinal de Aleluia e cantou para ele a letra de Cordeiro de Nanã, um lamento da banda sobre a escravidão, lançado em 1977. “Vocês conhecem a letra melhor do que eu”, disse ele sorrindo, e saiu do palco sob aplausos, apoiado em uma bengala.

“Por conta da minha idade, represento a prudência, e esses jovens que cantaram comigo no show representam o ímpeto. Acho que é uma boa combinação”, comentou Aleluia por telefone no dia seguinte à apresentação. (Ele completou 80 anos no fim do mês passado, mas se recusou a especificar a data.)

Apesar do coro do público, Os Tincoãs nunca foram muito famosos no Brasil - longe disso. O grupo é do município de Cachoeira, interior da Bahia, que, durante o século 16, tinha uma quantidade significativa de escravizados que cultivavam cana-de-açúcar. Os Tincoãs (1973), O Africanto dos Tincoãs (1975) e Os Tincoãs (1977), seus três álbuns principais, não fizeram sucesso quando lançados, e a banda se desfez no início dos anos 1980. Mas agora Os Tincoãs - nome inspirado em um pássaro de cauda longa cujo canto lembra o gemido de um gato, encontrado nas florestas próximas a Cachoeira - estão experimentando um renascimento junto ao público brasileiro e a uma nova geração de artistas. Seu álbum Canto Coral Afrobrasileiro, gravado há 40 anos, finalmente foi lançado.

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O Coral dos Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro acompanha a banda nesse álbum “perdido”, cujo conceito partiu do DJ de rádio e pesquisador Adelzon Alves, produtor dos Tincoãs na época, que almejava criar uma espécie de gospel afro-brasileiro. “Percebemos que existia uma conexão entre os canaviais que temos em Cachoeira e as plantações de algodão no sul dos Estados Unidos. Adelzon nos ajudou a perceber que tinha muita coisa em comum entre a África deste lado e a África do lado de lá”, comentou Aleluia em entrevista concedida em fevereiro, em um hotel em Copacabana, no Rio de Janeiro.

E acrescentou: “A diferença é a maneira como nos relacionamos com a religião. No Brasil, sempre buscamos sincretismos e parentescos. Por isso juntamos o afro com o barroco nas canções dos Tincoãs. Nesse álbum, a intenção era amplificar nossas vozes com a colaboração do coral.”

Início com bolero

Os Tincoãs começaram em 1961, cantando boleros. Seu álbum de estreia, Meu Último Bolero, de 1962, foi gravado no Rio por Dadinho (violão e voz), Heraldo (percussão e voz) e Erivaldo (percussão e voz). Depois do retorno do grupo a Cachoeira, houve um intervalo de uma década entre as gravações, período em que cada membro se dedicou a atividades fora da música. Em 1973, retornaram com Aleluia, que era professor, em substituição a Erivaldo.

A banda abandonou os boleros e repaginou seu repertório, adotando uma sonoridade que atrairia um público mais culto: harmonias vocais encantadoras (pense nos Beach Boys da Bahia) e uma fusão de samba, cantos de capoeira e canções espirituais, escritas em português e iorubá, que evocavam o candomblé, religião afro-brasileira.

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“Os Tincoãs me encantaram desde criança, quando eu ouvia minha mãe cantar as músicas do grupo. Eles simbolizam as raízes africanas da música brasileira”, afirmou Margareth Menezes, ministra da cultura do Brasil e também cantora e compositora, em entrevista por telefone.

Os Tincoãs não conseguiram se destacar, mesmo com elogios da crítica, participações em festivais e o reconhecimento de artistas renomados como João Gilberto - que gravou uma versão de Cordeiro de Nanã ao lado de Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Com um novo integrante, Badu, que substituiu Heraldo, o grupo se apresentou em Angola em 1983, acompanhando o sambista Martinho da Vila. A turnê durou somente uma semana, mas Aleluia e Dadinho decidiram permanecer no país africano depois dos shows. “Descobrimos outra Bahia em Angola”, explicou Aleluia. Descontente com a decisão da dupla, Badu voltou ao Brasil, o que precipitou o fim da banda.

Durante os quase 20 anos que viveu em Angola, Aleluia trabalhou como pesquisador e professor de arte. Dadinho, que tinha uma padaria na capital, Luanda, faleceu em 2000 em decorrência de um AVC. Com seus três principais álbuns fora de circulação, Os Tincoãs pareciam destinados ao esquecimento.

Renascimento

Mas, nos anos 2000, DJs e colecionadores de discos começaram a competir fervorosamente pelas poucas cópias em vinil dos álbuns da banda, encontradas em lojas de discos do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Gradualmente, sua música começou a ressoar na obra de artistas das novas gerações, como o grupo de afrobeat Bixiga 70 e os rappers Criolo e Emicida, que se empenharam em incorporar mais elementos brasileiros em suas criações.

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“Os Tincoãs revolucionaram a música brasileira ao harmonizar o canto afro-religioso. Eles representam um Brasil insurgente que, embora tenha sido vítima das piores consequências do colonialismo, nunca desistiu de produzir beleza. O legado do grupo é uma fonte inesgotável de inspiração para mim, principalmente agora que o país está reconhecendo a cultura negra”, disse Emicida, de 37 anos, em entrevista por e-mail.

O DJ e produtor Diogo Strausz, de 33 anos, lançou no ano passado uma versão cativante de um clássico do repertório dos Tincoãs: Deixa a Gira Girar. “A combinação de atabaques [tambor alto de mão] com vozes que me lembram os corais de Bach feita pelos Tincoãs é muito poderosa e contemporânea, e Deixa a Gira Girar é uma música sobre a pluralidade de crenças. Ela tem muito a ver com o sentido de comunhão que a gente busca na pista de dança”, comentou em entrevista por telefone.

Com essa onda de reconhecimento recém-adquirida, Os Tincoãs estão “retornando” com Canto Coral Afrobrasileiro, lançamento que se tornou possível porque Aleluia guardou a fita master que recebeu de Adelzon assim que retornou de Angola, em 2002. Entre 2010 e 2021, o músico lançou cinco álbuns solo, incluindo Afrocanto das Nações, indicado ao Grammy Latino de 2021.

“A história dos Tincoãs nunca foi linear. Sempre retrocedemos no tempo. Esse novo álbum surge de um desses intervalos temporais. Nem sei se representa um destino final, porque na vida estamos sempre em movimento. Só paramos quando entregamos o espírito”, afirmou Aleluia.

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