PUBLICIDADE

O carisma do canto e do violoncelo de Abel Selaocoe

Artista lançou seu primeiro álbum ‘Where Is Home (Hae Ke Kae)’, com temas que envolvem pertencimento, viagem e história

PUBLICIDADE

Por Hugh Morris
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE – Em uma noite recente no Bridgewater Hall, Abel Selaocoe, com seu violoncelo, interagiu com o público. Segurando o arco como um maestro, o músico pediu à plateia que juntasse a voz ao ritmo, e o som varreu o auditório.

PUBLICIDADE

Esse era The Oracle, programa itinerante construído em torno da multiplicidade de Selaocoe: durante o concerto, o artista sul-africano, de 30 anos, mais conhecido como violoncelista, transitou rapidamente entre o canto, o improviso, a apresentação em grupo e o posto de MC. Durante a noite, Selaocoe se apresentou com o conjunto de câmara Manchester Collective, passando por Stravinsky, Vivaldi e Mica Levi, e com seu trio, o Chesaba, adicionando influências do improviso centrado na batida e nos sons de todo o continente africano. Na indústria da música clássica, que incentiva os artistas a ser tradicionais ou ousados, Selaocoe escolheu ambos – e muito mais.

Temas de pertencimento, viagem e história pontuam seu álbum de estreia, Where Is Home (Hae Ke Kae), lançado em setembro pela Warner Classics. Misturando gêneros, aproveita a energia emocional íntima que é interrompida por explosões regulares, como em Ibuyile I’Africa / Africa Is Back e Ka Bohaleng / On the Sharp Side. (O nome do álbum e muitos dos títulos das faixas incluem traduções em línguas africanas, incluindo soto e zulu.)

Nos últimos anos, a capacidade de Selaocoe de se movimentar entre as categorias rígidas de estilo resultou na influência crescente sobre uma comunidade de música clássica cada vez mais consciente de sua deferência às tradições. Em 2021, fez a curadoria de um concerto no BBC Proms, um dos maiores festivais de música clássica do mundo, e é artista residente no Southbank Center de Londres para sua próxima temporada. Mesmo quando é acolhido por esses espaços institucionais britânicos, sua abordagem está profundamente enraizada nas ricas tradições musicais de sua terra natal.

“A tradição sul-africana não se inspira nos limites entre música performática, música participativa, música para atividades diárias. Na verdade, a música é só parte do que acontece”, disse, em entrevista por vídeo, Gwen Ansell, autora de Soweto Blues: Jazz, Popular Music and Politics in South Africa.

Nascido em 1992 em Sebokeng, município ao sul de Joanesburgo, a jornada de Selaocoe com o violoncelo começou quando passou a ir com seu irmão mais velho, Sammy, à escola da Organização Cultural Africana da África do Sul em Soweto, outro município a cerca de 50 quilômetros de distância. Viajando em um trem lotado, no qual os passageiros ocupavam até mesmo os espaços entre os vagões, Selaocoe removia as peças menores de seu violoncelo e as colocava no bolso, segurando o instrumento contra o peito para ocupar o mínimo espaço possível. Começou a tocar em um instrumento compartilhado, antes que os professores percebessem seu potencial e lhe doassem um exclusivo.

Na adolescência, seu irmão, que também é músico, “tinha a filosofia de que, se você está vivendo em um município, em um lugar que não oferece muito emprego, tem de começar a procurar muito cedo”, recordou Selaocoe. Seguindo essa ideia, aos 13 anos ganhou uma bolsa de estudos para o internato St John’s College, em Joanesburgo.

Publicidade

O violoncelista sul-africano Abel Selaocoe. Foto: Adama Jalloh/The New York Times

No St John’s, sonhava em se mudar para a Europa, e seus colegas romantizavam o continente como “a meca da música clássica, da expressão musical”. Depois de estudar com Michael Masote, que foi uma das vozes mais influentes da música clássica sul-africana, Selaocoe finalmente se radicou na Europa em 2010, quando se matriculou no Royal Northern College of Music em Manchester aos 18 anos.

Apesar de sua formação clássica no violoncelo, para Selaocoe o canto é tudo. “A voz faz coisas que meu corpo nem imagina, mas minha musicalidade, sim”, comentou durante um almoço perto de sua casa em Chorlton-cum-Hardy, subúrbio ao sul de Manchester.

Selaocoe começou a cantar como se aprende uma língua na infância: “Vendo os adultos e copiando.” Na infância, a mãe, empregada doméstica, e o pai, mecânico, ensinaram-lhe cerimônias culturais e o levavam à igreja. Cerca de seis anos atrás, um amigo introduziu Selaocoe no umngqokolo, forma de canto sul-africano, segundo ele, que adicionou uma nova dimensão às já carismáticas performances do músico.

O pedido que fez em Bridgewater Hall para que o público participasse da apresentação é típico de sua crença no poder da voz em conjunto. Nos ensaios de um espetáculo coletivo no Manchester Collective de 2018, “Sirocco”, Selaocoe “cantava coisas para mostrá-las a outros membros do grupo. Pedimos a ele que cantasse no show – antes, não tinha feito muito isso. Agora, refinou o canto com a prática, que é esse incrível caldeirão de diferentes influências”, contou Adam Szabo, o executivo-chefe do grupo, em recente entrevista por telefone.

PUBLICIDADE

Durante o almoço, Selaocoe voltou com frequência à ideia de que “cantar é universal”. Mas essa universalidade tem seus limites. Para Ansell, o autor e jornalista musical, “a canção é universal, o fato de as pessoas cantarem é universal, mas na verdade a linguagem, o significado, o discurso da música, não”.

Selaocoe observou que queria que seu trabalho oferecesse caminhos para experiências universais. “Tem coisas que vão além da linguagem, coisas que são só parte do instinto humano. A primeira é o movimento – a ideia de se expressar com o corpo. Portanto, vamos ainda mais fundo em coisas como a fé.”

A relação de Selaocoe com a fé é multifacetada: além de frequentar igrejas metodistas e apostólicas, foi criado em torno de práticas medicinais, curativas e espirituais tradicionais. “Meu coração sempre procurou apaziguar meus antepassados – tentar entrar em contato com eles, pedir conselhos.”

Publicidade

No Bridgewater Hall, canalizou a história por meio de pronunciamentos aforísticos, dizendo ao público: “O futuro está no passado.” Conectar-se com o passado – dentro e fora de sua música – é para ele uma maneira de explorar a questão colocada pelo título de seu álbum. “‘Onde é o lar?’ já não é só uma questão de espaço geográfico. Pode ser uma ideologia, dentro da prática artística, ou podem ser as pessoas de quem me cerco.”

Artisticamente, o lar atual de Selaocoe é no improviso, mudança confirmada quando ele foi convidado para se apresentar com o Art Ensemble de Chicago no London Jazz Festival de 2019. “Esse concerto foi um momento-chave para eu entender que minha expressão nem sempre precisa estar preparada. Como venho da música clássica, a preparação é quase tudo. Mas, em uma apresentação improvisada, eu me deixo levar pelo momento no palco e penso: ‘Nunca vou conseguir recriar o que fizemos.’”

Ainda assim, Selaocoe passa muito tempo com conjuntos clássicos, introduzindo novas abordagens do ritmo, incluindo técnicas decorrentes da riqueza dos instrumentos de cordas da África. Ele encontra resistência às suas ideias? “Sim, mas acho importante que você escolha bem seus colaboradores. Se há curiosidade, isso é 70 por cento do caminho andado.” Selaocoe também presta atenção em como suas apresentações são comercializadas. “Se toco uma sonata, me chamam de violoncelista clássico, mas, se toco outra coisa, não sou mais isso – sou só um músico africano.”

Seu sonho, segundo ele, é que sua abordagem mista, orientada para o ritmo, se torne intuitiva: “Ser capaz de entrar em uma sala, determinar um ritmo e as pessoas entenderem o que fazer com o arco, em vez de ser instruídas. Quando você coloca no papel, parece muito simples, mas na verdade não é.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.