PUBLICIDADE

O corredor que desafiou o apartheid e ajudou a transformar a Comrades

O sul-africano Kgadimonyane Hoseah Tjale se tornou um ‘herói’ da Comrades, ultramaratona que acontece na África da Sul desde os anos 1920

PUBLICIDADE

Por Ryan Lenora Brown
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em uma agradável manhã de domingo no fim de agosto, Kgadimonyane Hoseah Tjale estava em um estádio cheio de torcedores que gritavam à linha de chegada da ultramaratona Comrades, segurando uma pequena buzina de ar.

PUBLICIDADE

Ele já estivera aqui antes. Na década de 1980 e no início dos anos 1990, Tjale subiu quatro vezes ao pódio na Comrades, corrida de 90 quilômetros entre as cidades sul-africanas de Pietermaritzburg e Durban. Hoje, é a maior ultramaratona do mundo, atraindo até 20 mil corredores, multidões de espectadores e milhões de telespectadores ao vivo.

A história de como a Comrades se tornou a corrida que é atualmente está ligada à história de Tjale e de outros corredores negros pioneiros de sua geração. Nos últimos dias do regime do apartheid da África do Sul, eles ajudaram a transformar a corrida de uma disputa amadora em um enorme evento, bem parecido com o país que o promove. E fizeram isso em uma das nações mais desiguais do mundo moderno.

De volta à corrida pela primeira vez em 29 anos, Tjale ficou maravilhado quando os primeiros colocados o ultrapassaram. Em sua época, quase todos os principais corredores eram brancos. Agora, todos os melhores eram negros, vestindo a camisa de grandes clubes corporativos que lhes pagavam para que frequentassem campos de treinamento. O vencedor da corrida masculina de 2022, o segurança de uma universidade chamado Tete Dijana, ganhou cerca de US$ 42 mil em prêmios e bônus, o equivalente a cerca de uma década de seu salário. “Não tinha nada disso no nosso tempo”, disse Tjale, entregador aposentado que vivia em um barraco no norte de Joanesburgo ao disputar sua última corrida na Comrades em 1993, quando não havia prêmio em dinheiro.

Largada da Comrades Marathon na Prefeitura de Pietermaritzburg, na África do Sul. Foto: Rogan Ward/The New York Times

Tjale foi chamado pelos organizadores da Comrades para soar uma buzina que determina quem receberá a medalha especial dada aos corredores que completam o percurso em menos de seis horas. No carro que vinha do aeroporto, dois dias antes, Tjale perguntara a um deles por que o haviam convidado; afinal, ele nunca tinha vencido a corrida.

Mas, para os corredores da Comrades, a razão era óbvia. “Estamos aqui por causa dele”, afirmou Freddie Wilson, atleta de Joanesburgo, enquanto esperava para tirar uma foto com Tjale na área de exposição da corrida. Sua voz tremia de emoção. Como muitos sul-africanos negros, Wilson cresceu vendo Tjale na TV. Sua família não tinha televisão, mas no domingo da Comrades eles se juntavam a outros vizinhos na sala de uma família que tinha um aparelho e passavam o dia inteiro assistindo à corrida.

Usando um chapéu pescador e correndo de forma distinta, Tjale foi uma revelação no pelotão de frente. Proveniente de um país cujo governo visava sufocar as ambições dos negros sul-africanos, aqui estava um negro fazendo algo audaciosamente ambicioso, para todo o país ver. “Ele foi nosso maior. No momento em que vimos um negro fazendo isso, constatamos que poderíamos fazer também”, comentou Sello Mokone, que já disputou a Comrades 18 vezes.

Publicidade

Em seu auge, Tjale conseguia correr 90 quilômetros em um ritmo de cerca de um quilômetro a cada quatro minutos. Acumulou dezenas de vitórias em ultramaratonas, incluindo outra sul-africana famosa, a Two Oceans, de 56 quilômetros. Em duas ocasiões, quase derrotou o herói branco da Comrades, um loiro chamado Bruce Fordyce, que venceu a corrida nove vezes entre 1981 e 1990.

Mas, enquanto Fordyce se dedicava em tempo integral à Comrades, vivendo do dinheiro de palestras e patrocínios corporativos, Tjale trabalhava como motorista de entrega, correndo 24 quilômetros do lotado albergue de trabalhadores onde morava até o trabalho. Nos fins de semana, disputava todas as corridas locais que encontrava, desde as de dez quilômetros até as de cem quilômetros, em busca do prêmio em dinheiro para complementar sua renda. “Ele teve sorte”, observou Tjale sobre a rivalidade entre os dois.

Tjale cresceu na década de 1960 em uma área rural perto da cidade de Polokwane, anteriormente conhecida como Pietersburg. Deixou a escola depois do oitavo ano. Alguns anos depois, mudou-se para Joanesburgo para trabalhar como jardineiro para uma família branca. Cuidava das plantas durante o dia e lavava a louça da família depois do jantar. Nos intervalos, às vezes, corria.

Tete Dijana vence a Comrades Marathon, cruzando a linha de chegada em Durban, África do Sul, em agosto deste ano.  Foto: Rogan Ward/The New York Times

No fim da década de 1970, seu desempenho chamou a atenção do patrão, que o ajudou a comprar um par de tênis e entrar em um clube de corrida. Começou a participar de disputas e, em breve, a vencer.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Foi um momento auspicioso para começar corridas de distância. Na época, a África do Sul passava por boicotes esportivos internacionais generalizados, que mantinham o país fora da maioria dos grandes eventos. A nação estava desesperada para voltar, e em meados da década de 1970, o governo do apartheid anunciou que acabaria com a segregação em um esporte menor, a corrida.

Em meio a um boom global de corridas, a participação em disputas como a Comrades começou a aumentar. E a única estação de TV estatal da África do Sul começou a transmitir o evento ao vivo no início da década de 1980. Milhões assistiram a corredores negros como Tjale e a competidores brancos como Fordyce compartilhando garrafas de água e se abraçando à linha de chegada. “Na Comrades, todo mundo precisava de ajuda em algum momento, e as pessoas sempre correspondiam”, contou Poobie Naidoo, outro corredor de elite sul-africano da década de 1980, que tem ascendência indiana.

Contudo, no momento em que corredores como Tjale e Naidoo deixaram a pista, voltaram à realidade do apartheid. Em 1979, pouco tempo depois de sua primeira participação na Comrades, Tjale foi preso a caminho do trabalho por não ter documentos que comprovassem que estava autorizado a estar em uma parte branca da cidade. Passou uma noite na cadeia. “As corridas eram o único lugar em que às vezes eu sentia que não existia apartheid.”

Publicidade

Em 1989, Tjale e Fordyce participaram de um campeonato mundial de cem quilômetros. Por isso, Fordyce não participou da Comrades e Tjale correu cansado. Outro corredor, Sam Tshabalala, tornou-se o primeiro campeão negro da corrida. Tjale correu sua última Comrades em 1993, terminando silenciosamente em 51º.

Em 2016, Tjale, homem reservado e de riso fácil, aposentou-se e foi viver em uma fazenda de oito hectares que comprara perto de Polokwane. Foi uma das primeiras vezes que, desde que se casara na década de 1970, ele e sua esposa conseguiram viver juntos; passavam noites tranquilas no sofá, fazendo piadas e assistindo a novelas.

Ele não pensava muito mais na Comrades, além de ocasionalmente recusar convites para eventos que a corrida promovia. “Eu tinha parado com essa coisa”, afirmou simplesmente. Mas, este ano, um membro do conselho da Associação da Maratona Comrades chamado Isaac Ngwenya ligou com um apelo: será que Tjale poderia vir e aceitaria ser homenageado? Ele concordou e embarcou em um avião para Durban.

Tjale estaria na linha de chegada no Estádio Moisés Mabhida de Durban para soar a buzina das seis horas. Esperando em uma sala VIP, encontrou Jetman Msuthu-Siyephu, vencedor da corrida de 1992. Passaram a manhã trocando lembranças. Com o passar do dia, os dois viram os corredores chegando aos milhares, exalando alegria e exaustão. Tjale não parava de sorrir. “Quando morrermos, teremos deixado alguma coisa para este mundo”, disse ele a Msuthu-Siyephu.

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.