THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Ninguém gosta mais de gelo que os americanos. É uma piada recorrente, uma peculiaridade da personalidade nacional: as bebidas geladas são tão americanas quanto o rock‘n’roll, as picapes e os copos para viagem.
Em 1895, Mark Twain escreveu que o gelo havia se tornado tão inextricavelmente ligado aos Estados Unidos que “temos só uma única especialidade, só um item que pode ser chamado definitivamente de ‘americano’: a devoção nacional à água gelada”.
Nos anos que se seguiram, todo gelo era considerado bom. Mas agora estamos entrando em uma nova Era Dourada. A água congelada, que não custa praticamente nada para a maioria dos americanos, está sendo redefinida como um item de luxo.
Em festas de marcas de moda, cubos de gelo estampados com o logotipo da empresa são de rigueur. Nas mesas dos casamentos sofisticados, as luzinhas em frascos de vidro desapareceram e flores silvestres suspensas em cubos de gelo de US$ 14 estão em alta. Criadores do TikTok rotineiramente conseguem 30 milhões de visualizações em uma noite (e pagamento considerável) exibindo gavetas cheias de gelo, bem como links para comprar as formas especiais de todo tipo e tamanho. Depois, há o auge da opulência doméstica: a máquina de gelo que produz as pedras em forma de pepitas, anteriormente disponível apenas em cadeias de fast-food.
“Tenho quase 75 formas de gelo”, disse Kami Mehta, tiktoker que no fim do ano passado começou a compartilhar as dezenas de tipos de gelo que há em seu freezer na Flórida. Desde então, vários outros influenciadores seguiram o exemplo, atraindo um enorme público: o gelo não é apenas água congelada para sua bebida, é uma tela em branco para sua arte. “É incrível quantas pessoas estão fazendo isso. É preciso ser criativo agora”, disse ela sobre os vídeos.
Os americanos poderiam ter previsto essa situação. Em bares de coquetéis no país inteiro, “on the rocks” significa agora ter sua bebida favorita servida sobre uma esfera ou cubo de gelo extragrande, e o gelo turvo no coquetel pode justificar uma reclamação.
Em 2020, 51% dos dois mil americanos entrevistados pela empresa de eletrodomésticos Bosch se identificaram como “obcecados por gelo”. Muitos outros afirmaram que não beberiam água a menos que estivesse gelada, e que, se não houvesse gelo disponível, simplesmente tomariam menos água.
Como em tantas arenas da cultura, o TikTok está liderando o caminho. No ano passado, a hashtag #icetok, com um bilhão de visualizações, tornou-se um fenômeno de mídia social. Os vídeos postados com a tag incluem tutoriais para fazer “gelo em pó” e a introdução de todo tipo de líquido em máquinas de gelo. (Eis que surgem o gelo de molho picante, o gelo de espaguete e, talvez como antídoto, o gelo Pepto Bismol.)
Mas o mais popular entre o gênero TikTok é o subgênero de vídeos de reabastecimento de gavetas de gelo, que são em si um desdobramento da estranhamente reconfortante mania #cleantok que varreu as mídias sociais durante a pandemia.
“Acho que algumas pessoas fizeram pão e kimchi durante a pandemia, e outras fizeram cubos de gelo. Sei que houve um aumento constante, mas alguma coisa mudou nos últimos seis meses. Sinto que está por toda parte, particularmente com esses vídeos”, comentou Camper English, que escreve sobre coquetéis e é obcecado por gelo, e que é mais conhecido por ter introduzido uma técnica para fazer cubos cristalinos para os conhecedores de coquetéis há cerca de uma década.
Veja como é um vídeo de reabastecimento de gelo: uma gaveta de freezer vazia se abre e um par de mãos, nesse caso pertencente a Mehta, introduz recipientes de plástico. Em seguida, 13 tipos de gelo caem em cascata em cada compartimento. Primeiro, gelo em esferas, pequenos retângulos, cubos grandes e formas de coração. Depois, o gelo colorido: cubos do tamanho de caixinhas de anel cheias de fatias de laranja e limão; tijolinhos cor-de-rosa com frutas misturadas para smoothies; gelo cremoso cor de avelã feito com café congelado em forma de rosa, abóbora e buldogue. O vídeo, postado em setembro, tem mais de 17 milhões de visualizações.
A maioria das dezenas de milhares de comentários do post se enquadra em uma das três categorias: confusão (“Por que você tem tanto gelo?”), alegria (“A serotonina absoluta que isso me trouxe”) e inveja (“Acho que estamos em diferentes faixas de imposto de renda”). Mesmo para os espectadores céticos, o vídeo é irresistível, atingindo os cantos de resposta sensorial autônoma do cérebro (ASMR, na sigla em inglês). Mas, ao contrário dos vídeos virais de ASMR de bolas de madeira batendo em tigelas de sopa ou a suave crocância da areia cinética, este reproduz algo com o qual todo espectador já está familiarizado: o som do gelo se movendo pelo freezer.
“É algo fascinante que faz parte do nosso cotidiano. E você pode torná-lo tão emocionante ou tão normal quanto quiser”, afirmou Leslie Kirchhoff, fundadora da Disco Cubes, empresa de gelo personalizado que existe há quatro anos em Los Angeles. Para Kirchhoff, o gelo se apresentava como um mercado inexplorado para a criatividade: “Eu sempre quis ser inventora, e isso me ocorreu quando percebi que ninguém estava fazendo nada legal com o gelo”. Sob a bandeira Disco Cubes, ela cria cubos personalizados para eventos patrocinados por marcas e festas privadas.
Depois de aprender o método de English para deixar o gelo bem claro, Kirchhoff desenvolveu uma maneira própria de suspender objetos no interior do cubo – principalmente flores, produtos e logotipos –, procedimento “bastante intenso”, segundo ela, que “exige três passos especificamente cronometrados ao longo de três dias”. Seu processo é bem guardado e o preço cobrado é alto: “Os mais baratos são as esferas florais de US$ 8 cada”. Para um logotipo suspenso ou uma flor mais cara, o valor começa em US$ 14.
Indústria do gelo
Os americanos vêm transformando o gelo em mercadoria há séculos. “Os EUA têm a indústria de gelo mais antiga do mundo. Foi iniciada em 1806 por Frederic Tudor, que deliberadamente cultivou um mercado para o gelo – ele o oferecia de graça aos bares, para viciar as pessoas, e depois o vendia”, explicou Jonathan Rees, professor de história da Universidade Estadual do Colorado-Pueblo, que publicou três livros sobre o desenvolvimento da refrigeração americana.
Em 1860, segundo Rees, os americanos já tinham desenvolvido o consumo constante de gelo. Antes do advento do freezer, ele era retirado de lagoas e lagos em regiões mais frias e enviado para climas mais quentes, até mesmo para o Havaí. Em 1875, o homem do gelo era uma figura onipresente, indo de porta em porta para encher as caixas de gelo em “todas as casas, das mais ricas às mais pobres”. A refrigeração doméstica elétrica foi aperfeiçoada em 1925, e o advento das forminhas de gelo rapidamente se seguiu.
Hoje, a mesma tecnologia ainda é usada, mas a produção de gelo está evoluindo. Muitos fãs, em vez de comprar dezenas de formas ou aprender técnicas demoradas, estão simplesmente investindo em aparelhos mais sofisticados. Em 2019, a gigante sul-coreana de eletrônicos LG lançou uma geladeira equipada com um freezer que libera o que a empresa chama de Craft Ice, incluindo gelo em cubo, gelo triturado e bolas de gelo esféricas transparentes – permitindo que os consumidores se divirtam, como dizem os anúncios, “como um jogador de futebol”.
Kristen Seninger, gerente de um programa de marketing em San Francisco, comprou uma máquina de gelo da General Electric Opal Nugget há quase cinco anos e conquistou seguidores nas mídias sociais como a autoproclamada “rainha das pepitas de gelo”. “Depois que a GE Appliances viu como minha máquina de gelo estava viralizando e como eu falava sobre isso com frequência, me presenteou com a versão 2.0.” Esse modelo é vendido por quase US$ 700 e é um queridinho de #icetok. “Inúmeros seguidores compraram a máquina de gelo por causa da minha influência”, observou Seninger, que recebe uma parte da receita de vendas por meio de suas lojas na Amazon e na LTK. Até agora, ela vendeu 200 aparelhos.
Rees, o historiador, acha que há algo de distintamente americano em gastar com gelo: “Estamos dispostos a pagar por algo que é essencialmente gratuito – isso é um sinal de que o valorizamos.”
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