Onde ‘ninguém queria meninas’, um pai na Índia enfrenta o patriarcado

Uma epifania na sala de parto transformou o chefe de uma aldeia em um ativista improvável e altamente bem-sucedido contra testes de sexo pré-natais, que muitas vezes levavam ao aborto de fetos femininos

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Por Sameer Yasir

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Quando a enfermeira saiu da sala de parto, seu rosto ficou sombrio ao se aproximar com um bebê nos braços enrolado em um cobertor. Sua voz baixou, quase como se estivesse envergonhada, ao anunciar à família: “É uma menina”.

Sunil Jaglan, centro, discutindo questões de saúde com mulheres numa aldeia agrícola no estado de Haryana, na Índia, onde liderou uma campanha contra testes sexuais pré-natais. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

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Nada no comportamento negativo da enfermeira surpreendeu Sunil Jaglan, o pai da recém-nascida. Crescendo no estado de Haryana, no norte da Índia, ele estava acostumado com a forte preferência dos pais por ter filhos em vez de filhas.

Mas algo dentro dele estalou, ele disse, quando ofereceu dinheiro à enfermeira como um gesto de agradecimento, e ela recusou porque não havia entregado um menino.

“Você está envergonhada?” Jaglan lembrou-se recentemente de ter perguntado à enfermeira quando sua filha nasceu, 11 anos atrás.

Esse episódio o transformou em um improvável defensor dos direitos das mulheres em uma sociedade profundamente patriarcal. Ele transformou as três palavras da enfermeira, proferidas quase como uma maldição - “É uma menina” - em um slogan para uma campanha que as autoridades de saúde dizem ser responsável por salvar a vida de centenas de meninas em Haryana.

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Historicamente, Haryana tinha uma das proporções sexuais mais desequilibradas do país. Em 2012, o estado tinha 832 mulheres para cada 1.000 homens. E a aldeia de Jaglan, Bibipur, com cerca de 1.000 famílias, tinha uma das proporções sexuais mais assimétricas em favor dos homens em todo o estado.

“Ninguém queria meninas”, disse Jaglan, 41. “Mas todos queriam uma mulher para fazer tudo em suas casas, desde trabalhar nas fazendas até as tarefas domésticas.”

Sr. Jaglan em casa com sua família. Sua esposa, Deepa Dhull, está na extrema esquerda. Sua filha Yachika, de 9 anos, está sentada no colo da avó, Anita Redhu. Sua filha Nandini, 11 anos, observa. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Na Índia, a nação mais populosa do mundo e que experimentou um tremendo progresso econômico, a desigualdade de gênero permanece profundamente enraizada. Em muitos lares, especialmente nas áreas rurais, as meninas são consideradas um fardo social e financeiro cujos pais ainda pagam milhares de dólares em dotes para a família do marido depois de arranjarem um casamento.

Apesar da proibição oficial do teste de sexo pré-natal, anúncios do serviço eram colados nas paredes do mercado e nas rodovias de Haryana, e o aborto de fetos porque eram mulheres era comum. Embora existam algumas restrições, o aborto legal está amplamente disponível na Índia durante as primeiras 20 semanas de gravidez.

Pouco antes do nascimento de sua própria filha, Jaglan havia vencido uma eleição como chefe da aldeia e agora estava determinado a usar seu novo papel para iniciar uma campanha controversa contra o teste de sexo pré-natal que ele tinha certeza de ser responsável pela alarmante diferença de gênero em sua aldeia, seu estado e muitos lugares em toda a Índia.

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Embora não estivesse dentro de sua autoridade fazê-lo - e alguns consideraram uma invasão flagrante de privacidade - Jaglan tornou obrigatório que as famílias da aldeia relatassem uma gravidez dentro de quatro semanas, uma decisão que irritou muitos em Bibipur e outros locais.

Por meio de uma rede de informantes do sexo feminino, ele e sua equipe de voluntários seguiam mulheres grávidas como detetives quando suspeitavam que elas seriam submetidas a testes de sexo pré-natais. Se esse fosse realmente o caso, eles trabalhariam para prender o marido da mulher ou seus sogros, com a polícia operando na suposição de que a mulher grávida tinha pouco ou nada a dizer na decisão.

O medo da prisão funcionou.

Jaglan com as suas duas filhas, que, segundo ele, o inspiram a continuar a fazer campanha contra os testes sexuais pré-natais. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Em quatro anos, a proporção entre os sexos na aldeia melhorou de 37 meninas/63 meninos por 100 recém-nascidos para 51 meninas/49 meninos, de acordo com os registros de saúde do governo.

Esse modelo de relatar a gravidez logo foi copiado em outras partes de Haryana - embora sem o controverso requisito obrigatório de Jaglan.

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Os resultados mais recentes da pesquisa nacional de saúde da Índia mostram que o estado melhorou o equilíbrio da proporção entre os sexos para 926 mulheres por cada 1000 homens em 2020-21, contra 876 em 2015-16.

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“Ele tem sido extremamente eficaz em transmitir a mensagem”, disse Pratibha Chawla, professora da Universidade de Delhi, especializada em estudos de gênero e que realizou pesquisas em Haryana. “As pessoas o escutam porque ele está entre elas; ele sabe como se conectar com elas porque entende como funciona uma sociedade profundamente patriarcal.”

Encorajado por esse sucesso, Jaglan tornou-se um guerreiro no sentido de mudar atitudes arraigadas sobre as mulheres rurais, com sua crescente proeminência nacional decorrente em parte de sua capacidade de criar frases chamativas na língua hindi que ele espalha nas redes sociais.

Em 2015, ele lançou #SelfieWithDaughter, incentivando as pessoas a tirar fotos com suas filhas e compartilhá-las nas redes sociais. Seu esforço teve um grande impulso depois que jogadores de críquete indianos e estrelas de cinema começaram a participar.

Mais de uma dúzia de suas cerca de 100 campanhas nas redes sociais foram adotadas como política pelo governo de Haryana, incluindo que o hasteamento de bandeiras em todas as aldeias em dois dos feriados mais importantes da Índia - Dia da República e Dia da Independência - deve ser uma honra reservada para meninas que obtiveram as melhores notas nos exames escolares.

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Jaglan organizou cerca de 100 campanhas nas redes sociais em defesa dos direitos das mulheres na Índia. Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Nascido e criado em Bibipur, Jaglan - que admitiu que quando jovem era “patriarcal demais” em suas próprias atitudes - formou-se em ciência da computação e depois lecionou matemática, antes de prestar consultoria a instituições educacionais em busca de bolsas em 2012. Seu mandato como chefe da aldeia terminou em 2015.

Em uma tarde recente, Jaglan caminhava pelas ruas de Bibipur quando várias mulheres o reconheceram. Uma a uma, elas levantaram as mãos e as colocaram sobre a cabeça dele em sinal de bênção.

“Ele nos fez perceber o que uma mulher é capaz de fazer”, disse Shanti Jagda, 62, sobre Jaglan. “E mais importante, ele nos ensinou a dizer não.”

Jaglan disse que são suas duas filhas, Nandini, 11, e Yachika, 9, que o motivam a fazer o possível para erradicar o feticídio feminino.

“Não vou descansar até que o último culpado seja responsabilizado”, disse ele. “Todos os dias, minhas duas filhas me inspiram a continuar lutando.”

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E ele pode ouvir ao seu redor um som ligado à sua primeira campanha bem-sucedida: em sua aldeia e em muitas outras em Haryana, o nascimento de meninas agora é celebrado com o bater de panelas e frigideiras por membros da família, um ritual antes reservado para o nascimento de um menino. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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