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Poundbury, cidade ‘criada’ por Rei Charles em que moradores não podem pintar as casas sem permissão

Cidade tem misto de escolas arquitetônicas e começou a ser ‘montada’ na década de 1990; como agora é rei, Charles deve parar de dar opinião sobre como sua criação deve se desenvolver

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Por Alex Marshall

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Na Queen Mother Square em Poundbury, cidade pitoresca no sul da Inglaterra, há um enorme bloco de apartamentos neoclássico, pintado de amarelo brilhante e decorado com colunas românicas.

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A uma curta caminhada de distância, fileiras de casas com inspiração georgiana, algumas com falsas torres de relógio; vários armazéns de tijolos vermelhos “vitorianos”, construídos há alguns anos; e uma casa rosa que se assemelha a um castelo, com um conservatório moderno no anexo.

Poundbury é relativamente nova - sua construção começou na década de 1990 e só vai terminar em alguns anos -, mas está sendo erigida em uma gama de estilos arquitetônicos que tiveram seu auge há pelo menos cem anos. Não há edifícios de concreto, comuns em muitos centros de cidades britânicas, nem torres de vidro com janelas do chão ao teto.

A cidade de cerca de 4.600 habitantes foi amplamente ridicularizada, chamada de brinquedinho do príncipe ou de parque temático de arquitetura. No entanto, para um homem muito importante - o rei Charles III, o novo monarca britânico -, Poundbury é como as cidades britânicas deveriam ser.

De acordo com os princípios arquitetônicos de Charles, os edifícios não devem dominar a paisagem, devem ser construídos com materiais locais e devem apresentar recintos e pátios para promover um senso de comunidade. Foto: Francesca Jones/The New York Times

Durante quase quatro décadas, Charles procurou influenciar a forma da paisagem urbana britânica, usando discursos e livros para atacar a arquitetura moderna e destacar alternativas baseadas em formas clássicas. Também usou sua riqueza e suas terras. Antes de se tornar rei, Charles estava no comando do Ducado da Cornualha, cujas propriedades compõem mais de 515 quilômetros quadrados na Inglaterra e no País de Gales. Desde 1987, desenvolveu várias cidades-modelo em suas terras, incluindo Poundbury, para mostrar como suas preferências podem funcionar na prática.

Agora como rei, seus discursos estão limitados pela tradição, e ele não poderá emitir suas opiniões. Recentemente, em seu primeiro discurso como monarca, Charles prometeu seguir o exemplo de contenção pública, estabelecido por sua mãe, a rainha Elizabeth II, acrescentando que não seria capaz de dedicar “tempo e energia à caridade e às questões com as quais me importo tão profundamente”. Se Charles já esperava transformar a arquitetura britânica para que se parecesse mais com a de Poundbury, agora terá de se sentar e assistir em silêncio. Nesse caso, Poundbury pode acabar como o legado arquitetônico mais significativo do rei.

A cidade é regida por algumas regras que parecem vir diretamente dos tempos feudais. Ninguém pode pintar a própria casa de uma nova cor “sem o consentimento de Sua Alteza Real”, por exemplo. Outras normas são mais modernas: o residente não pode instalar antena de TV ou parabólica, e precisa de permissão real para estacionar um trailer em sua propriedade. Este ano, uma moradora de Poundbury recebeu ordens de remover quase cem vasos de plantas que estavam em torno de sua casa.

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Os edifícios de Poundbury estão em uma variedade de estilos arquitetônicos. Foto: Francesca Jones/The New York Times

Charles expôs sua filosofia arquitetônica em 1987 em um livro chamado A Vision of Britain (Uma visão da Grã-Bretanha, em tradução livre). Nele, escreveu que a arquitetura do país deveria se concentrar em estilos históricos e regionais, e resistir ao “câncer rastejante” do modernismo que estava fazendo “todos os lugares - de Riad a Yangun” se parecerem entre si. Também estabeleceu dez princípios arquitetônicos, determinando que os edifícios não devem dominar a paisagem, que têm de ser construídos com materiais locais para diminuir o impacto ambiental e que precisam contar com recintos e pátios que promovam um senso de comunidade.

Poundbury, planejada pelo arquiteto Léon Krier, incorporou esses princípios, bem como várias outras ideias de Charles, inclusive que as casas populares devem ser integradas e indistinguíveis das casas privadas e que as cidades devem promover a caminhada.

Segundo Quinlan Terry, arquiteto britânico que projetou muitos dos edifícios na Queen Mother Square, Poundbury foi uma história de sucesso: mostrou que os edifícios clássicos eram “mais fáceis de ver” e preferíveis à brutal arquitetura moderna. Desenvolvedores no Reino Unido inteiro copiam agora essa abordagem, acrescentou ele, com o público se perguntando: “Por que não posso viver em uma casa como essa?”

No entanto, outros arquitetos britânicos apontam que Poundbury está longe de ser perfeita. Ian Ritchie, arquiteto que criticou o que chamou de tentativas de Charles de “destruir a arquitetura moderna”, declarou que Poundbury era mais “uma declaração visual” e uma “noção romântica do que a arquitetura deveria ser” do que um profundo envolvimento com questões relativas ao modo de viver das pessoas: “Não há nada de notável nela, além de ter sido feita pelo príncipe de Gales.”

Poundbury contará com mais de 2.500 casas particulares quando concluída. Foto: Francesca Jones/The New York Times

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David Chipperfield, arquiteto famoso que Charles elogiou uma vez por sua renovação do Museu Neues, do século XIX, em Berlim, disse que apoiava muitas das ideias constantes do projeto de Poundbury, incluindo a noção de que os edifícios deveriam ter um baixo impacto ambiental. Mas observou que o problema era que muitos desenvolvedores que se inspiraram nessa cidadezinha ignoraram essas ideias mais amplas e se concentraram simplesmente na mistura de estilos históricos: “Agora temos desenvolvimentos na Inglaterra toda que são pequenos edifícios tradicionais, mas sem noção de espaço público, sem ideia de comunidade ou do ambiente.”

Charles, que estudou história na universidade, afirmou em um discurso em 2009 que seu interesse pela arquitetura havia surgido na adolescência, quando se tornou “profundamente consciente da destruição brutal que estava em curso nas cidades britânicas”, promovida por desenvolvedores modernistas com seus projetos de concreto.

No entanto, a maioria do público britânico não tinha conhecimento dessa paixão até 1984, quando ele fez um discurso em um evento para o Instituto Real de Arquitetos Britânicos: “Há muito tempo, planejadores e arquitetos ignoram consistentemente os sentimentos e desejos da população deste país. Os arquitetos projetam casas para críticos, não para inquilinos, e estão enchendo o horizonte de Londres com um pedaço de vidro gigante atrás do outro.”

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Charles então mirou em uma proposta de ampliação do edifício neoclássico que abriga a Galeria Nacional, que havia sido projetada pela empresa de arquitetura Ahrends, Burton e Koralek. O plano, que incluía um pátio de vidro curvo de aparência moderna, era, segundo Charles, “um carbúnculo monstruoso no rosto de um amigo muito amado e elegante”. (Pouco tempo depois, a proposta de Ahrends, Burton e Koralek foi deixada de lado.)

Charles também interveio mais diretamente, incluindo vários movimentos para sufocar projetos de Richard Rogers, arquiteto vencedor do Prêmio Pritzker que projetou o Centro Pompidou em Paris.

Em março de 2009, o então príncipe escreveu ao primeiro-ministro do Catar sobre um projeto que Rogers estava desenvolvendo em Chelsea Barracks, uma ex-instalação militar em Londres. Na carta, mais tarde incluída em documentos judiciais, Charles revela que seu coração “ficou pesado” quando viu os planos de Rogers para uma série de blocos de apartamentos de vidro, aço e concreto. Instou o governo do Catar, cujo fundo soberano estava envolvido com o desenvolvimento, a reconsiderar “antes que seja tarde demais”. Alguns meses depois, na sequência de um encontro de Charles com o emir do Catar em particular para discutir a proposta, este último abandonou o projeto.

Charles estabeleceu sua filosofia arquitetônica em um livro de 1987 no qual escreveu que a arquitetura da Grã-Bretanha deveria se concentrar em estilos históricos e regionais. Foto: Francesca Jones/The New York Times

Rogers, em entrevistas na época, chamou o comportamento de Charles de “inconstitucional”. “Não acredito que o príncipe de Gales entenda de arquitetura. Ele acha que ela deve se fixar em um ponto do passado, em vez de ser uma linguagem em evolução”, escreveu Rogers em seu livro de memórias de 2017, A Place for All People (Um lugar para todo mundo, em tradução literal).

Charles tentou repetidamente justificar suas intervenções: “Deixe-me salientar que não saio por aí criticando obras de arte privadas. Mas a arquitetura define o domínio público, e deve ajudar a nos definir como seres humanos, e a simbolizar a maneira como vemos o mundo”, frisou em um discurso de 2009.

Vários arquitetos disseram sentir que, agora que Charles é rei, vai parar de interferir. “Ele vai ficar preocupado com assuntos de Estado”, comentou Ritchie. Chipperfield concordou, afirmando que espera que Charles seja “muito mais cuidadoso em se envolver com qualquer caso individual”, mas acrescentou que esperava que ainda comentasse o estado da arquitetura e do meio ambiente britânico. “Não vejo nada de errado nisso. Não temos pessoas suficientes em posições políticas que reflitam sobre como as coisas devem ser”, concluiu Chipperfield.

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