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Produção de vinho no deserto ‘parece absurda’, mas vinhedos israelenses mostram caminho

Enquanto viticultores de todo o mundo lutam contra calor extremo e mudanças climáticas, pioneiros na produção de vinho no sul árido de Israel testam ideias que poderão encontrar aplicação global

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Por Isabel Kershner

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Diga “degustação de vinho” e as palavras imediatamente evocam imagens de colinas verdejantes no Napa Valley ou na Toscana. O que elas não evocam: o deserto.

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Mas em um pequeno café em uma fazenda comunal no deserto de Negev, no sul de Israel, um vinicultor local estava servindo uma variedade de néctares carmesim profundos no mês passado, convidando algumas pessoas a agitar seus copos para liberar os sabores e aromas frutados.

À medida que os cultivadores de áreas produtoras de vinho mais estabelecidas da Europa e de outras partes do mundo lutam contra o clima imprevisível e extremo, incluindo ondas de calor escaldante, os israelenses estão na vanguarda da produção de vinho em clima seco, testando abordagens que em breve poderão encontrar uma aplicação mais global.

Catadores entre as videiras de Grenache. A colheita chega mais cedo no Negev do que em outras áreas produtoras de vinho israelenses mais ao norte, que têm um clima mais mediterrâneo. Foto: Amit Elkayam/The New York Times

E o trabalho está sendo feito no Negev, lar de centenas de startups de tecnologia e uma torre solar futurista - e há muito tempo um laboratório para experimentação em Israel.

“É no Negev que a criatividade e o vigor pioneiro de Israel serão testados”, dizia uma inscrição na parede do café - uma citação icônica de David Ben-Gurion, primeiro-ministro fundador de Israel, que viveu seus últimos anos há cerca de 50 metros de distância, em uma austera cabana de madeira.

Ainda assim, mesmo Ben-Gurion provavelmente não imaginaria a cena inesperada no café, cujas prateleiras estavam cheias de garrafas de malbec, merlot e petit verdot syrah produzidos localmente. Ele também teria se assustado com os preços. A vinícola boutique produz uma seleção de 5.000 garrafas em um bom ano, e eles custam caro - pelos padrões locais - de US$ 27 a US$ 45 a garrafa.

“A água é muito cara aqui”, disse Zvi Remak, o vinicultor local.

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O café e a vinícola fazem parte da fazenda comunal Sde Boker, fundada em 1952 e outrora mais conhecida pelos seus produtos menos burgueses, pêssegos e ovelhas. Mas na década de 1990, Remak, membro da comuna e agrônomo, plantou um vinhedo e, após um período de estudos em sua terra natal, a Califórnia, voltou-se para a produção de vinho.

“Foi um pouco complicado”, lembrou Remak. Ele precisava da permissão da comunidade, cuja orientação havia começado “quase soviética” em seu utilitarismo e cujas autoridades de decisão precisavam de algum tempo para se ajustar à ideia de vinhos tintos artesanais envelhecidos em barris de carvalho.

Mas ele os convenceu, e outros seguiram seus passos. Hoje, cerca de 40 vinícolas boutique estão espalhadas por todo o Negev, seus vinhedos verde-esmeralda pontilhando a paisagem bege.

A vinicultura do deserto, e os turistas que começam a explorar esta rota do vinho relativamente nova, tornaram-se importantes para o desenvolvimento e o rebranding das extensões áridas que constituem metade do território de Israel.

Algumas paradas na rota do vinho Negev ainda são um pouco ásperas, no espírito da sobrevivência no deserto.

A vinícola e fazenda Tzel HaMidbar, à beira da impressionante Ramon Crater, oferece acomodações em casas de barro espartanas, equipadas com pouco mais que uma cama e ar-condicionado. Algumas de suas videiras crescem em um vale abaixo de uma prisão e são irrigadas com águas residuais recicladas do local.

“Vinho e deserto soam como um absurdo, como uma espécie de oxímoro”, disse Ziv Spector, cofundador da Tzel HaMidbar, enquanto servia um petit verdot tinto local.

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Mas suas videiras enfrentaram o desafio da terra pobre do deserto, o que só as torna mais resistentes, ele disse, em oposição àquelas que têm facilidade como “uma criança mimada”.

Embora esses vinhedos do Negev sejam novos, fazer vinho aqui não é. A área era famosa por seus vinhos produzidos localmente nos tempos antigos.

Um passeio de degustação de vinhos; a vinicultura do deserto tornou-se importante para o desenvolvimento e rebranding das extensões áridas que compõem metade do território de Israel.  Foto: Amit Elkayam/The New York Times

Mas o clima naquela época provavelmente era mais tolerante do que é agora, e as vinícolas da região estão desenvolvendo técnicas agrícolas que em breve poderão ser utilizadas em todo o mundo, à medida que os efeitos das mudanças climáticas piorarem.

“Para ter sucesso no Negev, você tem que ser ousado e experimentar”, disse David Pinto, um vinicultor que plantou videiras no terreno de sua família há cerca de três anos.

Pegando um saca-rolhas para um rosé de 2021 em um gramado verde vívido ao lado de seu vinhedo nos arredores de Yeruham, uma pequena cidade desértica, Pinto disse que um novo chardonnay de sua vinícola será lançado em janeiro e um espumante branco, o primeiro do Negev, estaria pronto em dois anos.

Com cerca de 325 dias de sol e pouca chuva anual, as videiras do deserto dependem da irrigação por gotejamento, uma inovação desenvolvida por outro coletivo do Negev na década de 1960 que permite ao agricultor controlar rigorosamente a quantidade de água.

Os vinhedos do deserto também trazem algumas vantagens naturais.

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À noite as temperaturas caem abruptamente, mesmo em pleno verão, beneficiando as vinhas. Com baixa umidade, as vinhas do Negev estão expostas a poucas pragas e fungos e requerem pouca pulverização de pesticidas, tornando grande parte da produção de vinho próxima da orgânica.

Os viticultores israelenses modernos estão produzindo principalmente vinhos mais frutados do Novo Mundo a partir de variedades de uvas importadas, em vez de vinhos do Velho Mundo de variedades originárias da região, disse Shahar Shilo, pesquisador especializado em turismo nas Terras Altas do Negev. Os vinhos de laranja da zona, essencialmente brancos macerados com cascas de uva, apresentam fortes sabores frutados, incluindo notas de damasco e lichia.

As vinícolas estão trabalhando para registrar o Negev como uma região produtora de vinho, com a ajuda da Fundação David & Laura Merage, uma organização filantrópica que se concentra em tecnologia do deserto, agricultura e turismo.

Isso, disse Nicole Hod Stroh, diretora executiva da fundação, significa identificar quaisquer características específicas compartilhadas pelos vinhos, garantir que a maioria das uvas seja cultivada na área e mostrar que “há uma história, uma tradição”.

Essa última parte não deve ser um problema.

Entre as ruínas de Avdat, uma cidade nas Terras Altas do Negev que existia desde o período nabateu no século IV a.C. até o seu desaparecimento após a conquista muçulmana no século VII d.C., os arqueólogos desenterraram prensas e cisternas de até 1.600 anos atrás - evidência de uma próspera indústria vinícola da era bizantina.

Os antigos da área cultivavam videiras nas encostas dos terraços e podem ter produzido até 1 milhão de litros de vinho por ano, de acordo com Lior Schwimer, um arqueólogo israelense. Os restos dos frascos distintivos usados para armazenar o vinho foram encontrados em lugares tão distantes quanto a França e a Grã-Bretanha.

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Pesquisadores israelenses identificaram pelo menos duas variedades de sementes antigas e agora estão tentando recriar o branco e o tinto bizantinos.

“Não há muitos lugares no mundo”, disse Shilo, “que possam ostentar 1.500 anos de tradição na produção de vinho”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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