LONDRES – Desde que a Tate Britain reabriu no mês de maio, depois de fechada durante cinco meses por causa da pandemia, o museu tem estado lotado. Os visitantes, usando máscaras passeiam novamente pelas galerias, saguões e seu pátio, desfrutando da enorme coleção de arte britânica, desde retratos do século 16 às instalações contemporâneas.
Mas uma das salas permanece proibida e não por causa das restrições impostas pela pandemia. As portas do restaurante no subsolo do museu estão fechadas e um cartaz do lado de fora indica que “continuará fechado até novo aviso”.
As paredes do restaurante estão decoradas com um mural de 16 metros de largura chamado The Expedition in Pursuit of Rare Meats (A expedição em Busca de Carnes Raras, em tradução livre), pintado pelo artista britânico Rex Whistler. A obra épica, encomendada nos anos 1920 para atrair clientes para o restaurante, retrata um grupo numa caçada cavalgando por uma paisagem com montanhas, jardins ornamentais, castelos e pagodes chineses em busca de unicórnios, leopardos e outras vítimas exóticas. "O afresco de Whistler tornará os bolos da galeria e os pãezinhos londrinos ainda mais saborosos", afirmou o presidente do conselho curador da Tate, Lord D'Abernon, quando do seu discurso na inauguração do mural, em 1927.
Duas pequenas partes da obra, cada uma com poucos centímetros de largura, não foram mencionadas por D’Abernon na época, mas estão agora causando uma dor de cabeça para os curadores da Tate. Uma delas mostra uma mulher branca elegantemente vestida arrastando um menino negro preso a uma corda; na outra, o menino corre atrás de uma carruagem puxada por cavalos tentando acompanhá-la, preso com uma coleira no pescoço.
Esse mural foi o pano de fundo do restaurante de luxo – um dos vários refeitórios do museu que propiciaram uma receita de US$ 900 mil para a instituição no ano anterior à pandemia – durante quase 100 anos, mas poucos clientes pareciam notar o sofrimento do menino.
Isso mudou ano passado, quando fotos começaram a aparecer nas redes sociais e ativistas passaram a exigir que as imagens do menino fossem removidas das paredes e o restaurante fosse fechado.
O Grupo Tate, que administra a Tate Britain e os museus irmãos – incluindo o Tate Modern – diz que não pode mexer no mural, que é uma obra de arte a seus cuidados e faz parte de um edifício protegido com base nas leis inglesas que resguardam o patrimônio cultural do país. E prometeu uma análise formal do futuro da obra até o final do ano.
Mas seja qual for a conclusão dessa análise, alguém ficará decepcionado. O mural colocou o grupo diante de um dilema num momento em que as tensões têm aumentado no tocante ao enfrentamento do legado de racismo e colonialismo da Grã-Bretanha. O museu se vê encurralado entre os ativistas que exigem a remoção da obra – e cujas preocupações no sentido de uma justiça racial são compartilhadas por muitos artistas e funcionários da Tate – e o governo britânico, que financia o museu e defende um enfoque menos intervencionista.
No ano passado, o ministro da Cultura, Oliver Dowden, traçou uma política de “manter e explicar” monumentos considerados controversos, depois que ativistas derrubaram uma estátua do século 19 do comerciante de escravos Edward Colston, em Bristol. Os museus devem manter objetos contestados à mostra, afirmou Dowden. “Como órgãos financiados com dinheiro público, vocês não devem adotar medidas motivadas por ativismo ou política”, escreveu o ministro em uma carta expondo sua abordagem para os dirigentes dos grandes museus do país.
Os curadores da Tate Gallery também devem se mostrar cautelosos porque o desejo do governo de abafar essa cruzada parece estar influenciando a estrutura dos conselhos diretores dos museus. As autoridades devem aprovar as nomeações feitas para os conselhos das grandes instituições, incluindo a Tate. Em janeiro o ministério decidiu não renomear Aminul Hoque, acadêmico que defendeu uma “descolonização do currículo da Grã-Bretanha”, para um segundo mandato na diretoria do Royal Museums Greenwich. O presidente do conselho do museu renunciou em protesto. Em março, a curadora do Museu da Ciência, Sarah Dry, retirou um pedido de renomeação ao se sentir pressionada a apoiar a política do ministro da Cultura, afirmou ela em carta à direção do museu.
Em comunicado por e-mail, o porta-voz do ministério da Cultura declarou: “Estamos comprometidos em assegurar que nossas instituições financiadas com dinheiro público reflitam a plena diversidade dos contribuintes que elas atendem. Não existe nenhuma presunção automática de renomeação”.
Os que fazem campanha contra o mural querem mais do que soluções temporárias. O furor nas redes sociais começou em julho do ano passado quando The White Pube – nome usado por duas críticas de arte, Zarina Muhammad e Gabrielle de la Puente, postaram fotos das seções ofensivas do mural no Instagram. “Como esse restaurante ainda existe?”, escreveram na legenda. “Que decoração é ESTA?”.
“Como essas pessoas brancas e ricas ainda decidem frequentar o restaurante para beber ‘os vinhos mais finos da sua adega” tendo escravos como pano de fundo?” Uma petição on-line exigiu que a galeria removesse o mural da parede ou o restaurante da sala.
Da noite para o dia a Tate mudou seu website e removeu as referências ao restaurante como "a sala mais divertida da Europa" e alguns meses depois os administradores do museu debateram a questão do mural. O comitê de ética do museu foi "inequívoco" de que a obra era ofensiva, de acordo com atas da reunião.
Em dezembro, a galeria prometeu analisar o futuro do mural. “Não desejávamos iniciar esse processo com qualquer novo rumor”, disse a porta-voz do museu. O Tate recusou vários pedidos de entrevista para este artigo.
The White Pube declarou num e-mail ser bizarro o fato de a Tate demorar tanto para encontrar uma solução “Achamos que a incapacidade da Tate e a indisposição para fazer realmente algo a respeito do mural, além de ponderações abstratas vagas, é uma triste constatação”, afirmaram.
Mas as imagens problemáticas já eram alvo de discussão dentro do museu bem antes do The White Pube chamar a atenção do público. Penelope Curtis, diretora da Tate Britain de 2010 a 2015, disse em entrevista por telefone que em 2013, quando o mural foi restaurado como parte de uma reforma que custou US$ 63 milhões, alguns funcionários expressaram preocupação. Um folheto foi elaborado para os frequentadores do restaurante, alguns deles perguntando sobre o mural.
“Foi levantada a possibilidade de se colocar uma tela sobre ele", disse Curtis sobre a parte mostrando o menino negro escravizado, "mas isso só chamaria atenção para a imagem”.
Em 2019 um cartaz foi colocado na porta do restaurante, semelhante aos textos explicativos nas galerias do museu. Depois dos primeiros quatro parágrafos, o texto reconhecia que “Whistler retrata a escravidão de um menino negro e a angústia de sua mãe usando figuras bastante estereotipadas que eram comuns na época”.
Alguns funcionários afirmavam que o cartaz não ia longe o bastante. “Não falava em racismo nem sobre o trauma que as imagens causam”, disse Maria Kubler que trabalhou como voluntária na Tate. Ela deixou a instituição em janeiro de 2020 porque sentiu “falta de apoio às minhas tentativas para atacar problemas de racismo”, acrescentou.
Rudi Minto de Wijs, que foi co-diretor da rede de funcionários não brancos da Tate, afirmou que os membros do grupo “ficavam indignados com o mural" e sempre levantavam o assunto nas reuniões. No ano passado, após a tempestade nas redes sociais, ele se reuniu on-line com Maria Balshaw, diretora da Tate Gallery e apresentou a ela uma proposta do grupo de transformar o restaurante num espaço educacional, disse ele.
Balshaw respondeu que a ideia seria analisada, “mas nada ocorreu”, disse Wijs. “Nada vai acontecer”, afirmou. Ele foi demitido e recebeu uma indenização do museu em abril, o que o fez se sentir um “causador de problemas”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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