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Restaurantes repensam o papel do gênero no serviço

Espaços querem se tornar receptivos a pessoas com identidade de gênero diferente do sexo que lhes foi atribuído no nascimento

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Por Rax Will

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - LOS ANGELES – Enquanto Anaelia Ovalle estava do lado de fora de um restaurante, decidindo se deveria entrar, o anfitrião fez uma saudação amigável: “Olá, senhor.” Mas a frase não pareceu tão acolhedora para Ovalle, de 27 anos, que se identifica como não binário e usa pronomes neutros.

Natanya Hugunin limpa um balcão no Gay4U, restaurante vegetariano que oferece refeições grátis para pessoas não brancas transgêneros, em West Oakland, Califórnia. Foto: CHLOE AFTEL

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Ovalle tem uma aparência andrógina. E, ao pedir um cardápio, percebeu que o garçom estava confuso, prestando atenção ao tom de sua voz e notando detalhes como o delineador e as unhas pintadas. O garçom rapidamente mudou de ideia, e passou a chamar Ovalle de “senhora”.

“É engraçado que façam essa inversão. A suposição é que o gênero é binário. Ficam sem saber se estão falando com um senhor ou uma senhora. Isso mostra a necessidade de ter mais maneiras de abordar as pessoas de forma neutra em relação ao gênero”, disse Ovalle, que trabalha com aprendizado de máquina.

As pessoas com identidade de gênero diferente do sexo que lhes foi atribuído no nascimento (incluindo as transgênero e as não binárias) – conhecidas como pessoas com expansão de gênero – há muito enfrentam discriminação e violência. No ramo dos restaurantes, sofrem assédio nas cozinhas e são impedidas de atender o público ou de escolher qual banheiro usar.

Comparada a barreiras como essas, a identificação incorreta de clientes por garçons pode parecer um detalhe. Mas aqueles que passam por isso afirmam que se trata de algo doloroso ou até perigoso se forem expostos publicamente. À medida que aumenta o reconhecimento de pessoas com expansão de gênero (no mundo todo, o dia 31 de março foi escolhido como o Dia da Visibilidade Trans), alguns donos de restaurantes e organizações estão pressionando por formas de fazer com que clientes e funcionários se sintam mais bem-vindos.

Em Los Angeles, a chef Sara Kramer vem trabalhando para redefinir a etiqueta do restaurante, desde que ela e Sarah Hymanson abriram o Kismet em 2017. Ela tinha observado o desconforto de muitos clientes com uma saudação como “Olá, senhora!”.

Na Kismet e Kismet Rotisserie, todos os funcionários são treinados para usar linguagem neutra em matéria de gênero, como “Ei, pessoal” ou “E aí, todo mundo?”, ao cumprimentar os clientes, e usar pronome neutro quando desconhecem o pronome adotado por eles. Esses protocolos fazem parte do manual de treinamento do restaurante e são discutidos regularmente durante as reuniões da equipe, de acordo com Kramer: “É um treinamento muito simples para garantir que os membros da equipe entendam a importância de não fazer suposições sobre a identidade do cliente, optando pela linguagem neutra ou por perguntar diretamente qual pronome usar ao se dirigir à pessoa. Portanto, acho que não é difícil.”

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Os estereótipos de gênero são incorporados ao serviço de restaurante tradicional. A cadeira é muitas vezes puxada para as mulheres que chegam, que são atendidas primeiro. Muitos restaurantes abandonaram essas práticas, mas na Europa esse tipo de serviço à moda antiga ainda é comum.

Alguns donos de restaurantes podem relutar em mudar práticas arraigadas ou retreinar funcionários, principalmente enquanto lutam com os desafios da pandemia e a dificuldade de encontrar trabalhadores.

Yasemin Smallens, que se identifica como uma lésbica com identidade masculina e que trabalhou em restaurantes na cidade de Nova York e em Poughkeepsie, no estado de Nova York, declarou-se favorável ao treinamento de conscientização de gênero, mas acha que isso será adotado apenas por proprietários cujos pontos de vista se alinham com a ideia: “As questões vão muito além do local de trabalho. Acho que é um pouco limitado pensar que há uma maneira de abordar esse tema – como apenas fazer uma pequena mudança ou começar a incluir pronomes quando você contrata pessoas – e que tudo vai melhorar.”

Telly Justice fora da vitrine onde ela e a sommelier Camille Lindsley planejam abrir o HAGS, um restaurante amigável para pessoas queer. Foto: DESMOND PICOTTE

Muitos restaurantes levam em consideração a identidade fornecida pelo cliente durante a reserva on-line. Mas empresas de serviços como a Resy, a OpenTable e a Yelp não oferecem um campo de pronome que permita aos clientes identificar seu gênero.

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O Yelp sinalizou seu apoio à inclusão adicionando rótulos que destacam empresas LGBTQ na plataforma e, em junho – Mês do Orgulho – essas empresas foram destacadas em mapas com alfinetes de arco-íris. Quando lhe perguntei se a plataforma adicionaria um campo de pronome ao seu sistema de reservas, a diretora de diversidade, Miriam Warren, respondeu: “Levantar essa questão agora me faz pensar que é algo que certamente poderíamos sugerir para a equipe de produtos.”

Um porta-voz da Resy confirmou que o serviço não possui um campo de pronome, “o que não quer dizer que não adicionaremos o campo no futuro”. A OpenTable não respondeu às perguntas deste artigo.

Os proprietários do HAGS, autodenominado “restaurante queer de luxo”, que abrirá as portas este ano na cidade de Nova York, criaram várias maneiras práticas de receber os clientes com expansão de gênero.

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Os membros da equipe usarão roupas neutras no que se refere ao gênero, que podem ser ajustadas em vários lugares para alterar a forma e parecer mais masculinas ou femininas, se desejarem. Pins de pronome estarão disponíveis para ser usados tanto pelos funcionários quanto pelos clientes. Estes serão servidos em uma ordem determinada por seu lugar à mesa. Mais da metade das pessoas que foram contratadas para a abertura são de gênero expansivo, comentou o chef Telly Justice, coproprietário do restaurante com a sommelier Camille Lindsley, acrescentando: “Estamos construindo um espaço em que não só os clientes, mas todos que entram no espaço, são bem-vindos como são. Se você não pode contratar uma pessoa que não está em conformidade com seu gênero, não pode alimentar uma pessoa que não está em conformidade com seu gênero.”

Alguns grupos sem fins lucrativos estão se esforçando para ajudar os restaurantes a navegar em um território desconhecido. Desde sua fundação em Los Angeles, em 2016, a TransCanWork forneceu treinamento a 2.500 candidatos e a 500 empregadores nos EUA para garantir que os clientes se sintam bem-vindos por meio de ferramentas que criem um ambiente de trabalho confortável para trabalhadores com expansão de gênero. Esse treinamento inclui conversas francas sobre como é ser uma pessoa TGI – a sigla em inglês que a organização usa para transgênero, variante de gênero e intersexo. “Ficamos hipervigilantes em qualquer ambiente”, comentou Sydney Rogers, gerente de educação e treinamento da instituição, que usa pronomes neutros e “ela”. E completou: “Mesmo as empresas que são amigas dos gays podem ser assustadoras para pessoas com expansão de gênero. Muita gente nem percebe que, quando você lida com um mundo que é todo gay e lésbico binário, quando uma pessoa TGI entra, ela está sendo automaticamente submetida a esse mundo.”

A TransCanWork foi fundada em 2016 por Michaela Mendelsohn, mulher trans que possui e administra seis franquias El Pollo Loco no sul da Califórnia. Ela fez a transição enquanto gerenciava os restaurantes e percebeu a necessidade de ajudar funcionários com expansão de gênero. Ao longo de vários anos, Mendelsohn contratou 50 funcionários trans, em sua maioria mulheres negras. Uma delas, Jessye Zambrano, disse que estava fazendo a transição enquanto trabalhava em um restaurante de fast-food em Los Angeles, mas um supervisor a proibiu de usar maquiagem ou vestidos no trabalho. Ela agora trabalha como gerente-geral em uma das mais movimentadas unidades da El Pollo Loco de Mendelsohn e se sente à vontade para se apresentar como quiser.

Em West Oakland, na Califórnia, Ginger Espice está fazendo um esforço extra para receber clientes com expansão de gênero. Desde 2019, quando fundou o restaurante vegano Gay4U, Espice oferece a pessoas transgênero não brancas uma refeição gratuita. Os clientes simplesmente declaram sua identidade no registro ao fazer o pedido.

Inspirados no Gay4U, os restaurantes Mis Tacones, de Portland, no Oregon, e Moon Cherry Sweets, em Milwaukee, iniciaram um programa semelhante. Nos próximos seis meses, o Espice levará o Gay4U para a estrada, aparecendo em outros restaurantes dos EUA.

Espice contou que alguns clientes que chegam para ganhar uma refeição estão se assumindo pela primeira vez como transgênero. O restaurante, ao lado de uma loja de conveniência em um quarteirão de casas vitorianas, não tem placa. Mas uma bandeira trans na porta proclama: “Ser queer é ser santo.” “Se eu puder alimentar cem pessoas em um mês ou seja lá o que for, então que seja uma refeição que todos façamos juntos. Estamos todos nos unindo”, afirmou Espice.

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