Com saudade da vida em turnê, roadies conversam no Zoom sobre saúde mental

As equipes que trabalham nos bastidores dos shows ficaram sem rumo na pandemia. Para alguns, a solução foi a criação de um grupo que se encontra semanalmente no Zoom

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Por Alex Marshall

LONDRES – William Frostman, engenheiro de iluminação, que fazia turnês com os Rolling Stones e Queen passou um ano inteiro fechado em casa, o período mais longo de sua carreira de décadas. “Só quero acordar em um ônibus”, disse Frostman, 60 anos, a dezenas dos seus colegas roadies em uma recente reunião pelo Zoom.

Com saudade da vida na estrada, ele tinha alguns temores lá no fundo, afirmou. Alguém o empregaria? O passaporte da vacina funcionaria? E havia outra questão também, acrescentou. Ele adorou ficar com a família todos os dias, na pandemia. No grupo, vários colegas roadies concordaram plenamente no Zoom.

Suzi Green, que fundou o Back Lounge, um grupo de apoio à saúde mental para roadies, em Hampshire, Inglaterra. Foto: Suzanne Plunkett/The New York Times

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Na imaginação popular, os integrantes dos bastidores de shows são sujeitos calados, vestidos de preto, que falam de música, mas pouco de outros assuntos. As pessoas nem imaginam os roadies se abrindo para falar de sentimentos. Mas os organizadores das turnês, engenheiros de som, iluminadores, e outros que se reúnem no grupo de suporte Back Lounge, todas as quartas-feiras não poderiam estar mais distantes desta imagem ultrapassada.

Os integrantes do grupo não estão ali para conversar sobre bandas, mas para trocar ideias sobre a saúde mental de cada um.

Um ano depois do início da pandemia, muitos esperam o recomeço da vida cultural o mais rápido possível. Na Inglaterra, o governo informou que os eventos na área de entretenimento voltarão a ser permitidos a partir de 17 de maio, desde que os níveis do contágio estejam sob controle.

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Mas para muitos roadies – que muitas vezes dependem das turnês mundiais que duram meses para ganhar a vida – o retorno ao trabalho em tempo integral parece algo muito distante.

“O meu medo é me desapontar de novo”, disse Suzi Green, veterana organizadora de turnês que criou o grupo. O medo dela é que voltem a ser impostas restrições. Ela teme que se encontrar trabalho, poderá voltar para os hábitos insalubres da vida na estrada, como sobreviver unicamente à base de pizza.

O impacto da pandemia na saúde mental dos membros das equipes que fazem turnê foi enorme. Em novembro, a Associação de Serviços de Produção e outras organizações britânicas que representam os trabalhadores de espetáculos ao vivo entrevistou os seus membros sobre o problema. Metade dos 1.700 entrevistados disse que sofre de depressão, e cerca de 15% afirmaram que chegaram a pensar em suicídio.

Green, que viaja com músicos como PJ Harvey e James Blake, fundou o Back Lounge em junho, depois de se sentir “realmente deprimida”, afirmou em entrevista por telefone.

Quando em março alguns eventos foram cancelados, ela se sentiu como se tivesse perdido a própria identidade, confessou. “A nossa vida é ficar fora nove, dez meses ao ano”, contou. “É toda a nossa existência”.

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Um dos amigos de Green, um professor, falou que eles haviam sido beneficiados por participarem de um grupo de apoio profissional durante a pandemia. Então ela ficou imaginando se haveria algo parecido para as pessoas do seu campo de trabalho. Fez uma busca on-line e descobriu o Backline, uma ONG sediada em Brooklyn que promove a saúde mental na área da música.

Um encontro on-line do qual ela participou, organizado pela Backline Care foi “uma espécie de salva-vidas”, afirmou. Ela decidiu criar algo semelhante para europeus que acham difícil participar de reuniões que se realizam nos EUA por causa da diferença de horário.

A primeira Back Lounge – assim chamada por causa da área no fundo do ônibus de turnê onde a equipe costuma relaxar depois dos shows – foi realizada em uma quarta-feira de junho. E as reuniões se repetem semanalmente no mesmo dia e horário desde então, atraindo desde veteranos da indústria que produzem shows, até gerentes de turnês que conduzem pequenas bandas pela Europa.

Green trouxe convidados, como terapeutas e personal trainers, mas o foco continua sempre nos roadies dispostos a falar dos próprios sentimentos, disse Green.

“Não sabia que eu precisava disso, mas eu precisava”, comentou Frostman, responsável pela iluminação, em uma entrevista por telefone. Ele acrescentou que está trabalhando como carteiro para sobreviver. “É muito bom falar em um grupo onde as pessoas te entendem”, afirmou.

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Nathalie Candel, 29 anos, gerente de turnê que assiste regularmente às sessões do Back Lounge, espera que o grupo continue se encontrando quando o setor voltar para a estrada. “Nós precisamos avaliar o que exigimos das pessoas quando viajamos”, afirmou. Alguns membros das equipes, como ela mesma, se gabam de trabalhar 19 horas por dia, acrescentou, e isto evidentemente não é nada saudável.

Numa das reuniões, o Back Lounge discutiu o tema do “ser deixado para trás”.

Alguns dos roadies disseram que temiam que a indústria da música passasse a caminhar sem eles ou que os seus contatos tivessem mudado para novas linhas de atividade. “O medo de ser deixado para trás é real”, disse Debbie Taylor, que é gerente de equipe nas turnês mundiais do Guns N’Roses. “Eu tenho pesadelos a respeito disso”, acrescentou.

O tom é sério, mas Keith Wood, um gerente de turnê em estádios, aliviou a tensão.

“Vou contar uma história para vocês sobre ser deixado para trás“, disse Wood. E falou da vez em que um ônibus de turnê de Suzanne Vega partiu sem ele depois de uma parada em Nebraska. Isto aconteceu antes dos celulares, explicou, e ele só conseguiu alcançar o pessoal na parada seguinte com a ajuda de um motorista muito prestativo.

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Todos riram, e por um instante, as suas preocupações se abrandaram. Mas então veio a saudade da estrada.

“Eu sinto falta do ônibus”, disse Taylor. “Você e eu também”, acrescentou Frostman. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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