THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - A esclerose múltipla, uma doença autoimune que afeta 2,9 milhões de pessoas, constitui um quebra-cabeça biológico.
Muitos pesquisadores suspeitam que a doença seja desencadeada por um vírus, conhecido como Epstein-Barr, que faz com que o sistema imunológico ataque os nervos e pode deixar os pacientes com dificuldades para andar ou falar. Mas o vírus não pode ser a história completa, já que quase todo mundo é infectado por ele em algum momento da vida.
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Um novo estudo encontrou uma possível solução para esse paradoxo nos restos do esqueleto de uma tribo perdida de nômades que pastoreavam gado nas estepes do oeste da Ásia há 5 mil anos. Acontece que os nômades carregavam mutações genéticas que provavelmente os protegiam de patógenos transportados pelos animais, mas que também tornavam os sistemas imunológicos deles mais sensíveis. Esses genes, sugere o estudo, tornaram os descendentes dos nômades propensos a uma resposta imunológica descontrolada.
A descoberta faz parte de um esforço maior e sem precedentes para entender como o passado evolutivo moldou a saúde das pessoas vivas. Os pesquisadores estão analisando milhares de genomas de pessoas que viveram entre Portugal e a Sibéria e entre a Noruega e o Irã há cerca de 3 mil a 11 mil anos. Eles esperam traçar as raízes genéticas não apenas da esclerose múltipla, mas também do diabetes, da esquizofrenia e de muitas outras doenças modernas.
“Estamos levando a genômica humana antiga a um nível totalmente novo”, disse Eske Willerslev, geneticista da Universidade de Copenhague que liderou o esforço.
Os pesquisadores publicaram o estudo sobre a esclerose múltipla, bem como três outros artigos sobre a genética e a saúde dos povos antigos, no início de janeiro, na revista Nature.
Por mais de uma década, Dr. Willerslev e outros pesquisadores têm extraído DNA de ossos humanos antigos. Ao comparar o material genético sobrevivente com o de pessoas vivas, os cientistas conseguiram rastrear algumas das migrações mais significativas de pessoas em todo o mundo.
Por exemplo, eles registraram o movimento de agricultores do que hoje é a Turquia pela Europa, começando há cerca de 8 mil anos. Esses primeiros agricultores encontraram caçadores-coletores europeus que viviam no continente há mais de 30 mil anos. Em alguns lugares, o DNA dos caçadores-coletores desapareceu dos esqueletos após a chegada dos agricultores, o que sugere conflitos violentos. Em outros lugares, as duas populações se misturaram o suficiente para produzir gerações posteriores com ancestralidade mista.
Milhares de anos se passaram antes da próxima grande mudança migratória. Há cerca de 5 mil anos, o DNA europeu começou a mostrar as assinaturas genéticas de um grupo de pastores que vivia nas estepes que se estendem da Ucrânia ao Cazaquistão, chamado Yamnaya.
Os Yamnaya viajavam a cavalo e em carroças por centenas de quilômetros de pastagens, pastoreando vacas, cabras e ovelhas ao longo do caminho. Mesmo sem fazendas ou cidades, eles prosperaram por séculos, enterrando os mortos com ouro e joias.
Na Idade do Bronze, os Yamnaya expandiram o território deles, passando por grande parte da Ásia e da Europa. Willerslev e colegas descobriram que, uma vez na Europa, o grupo frequentemente exterminava os agricultores que encontrava, embora também mantivesse relações pacíficas em alguns lugares.
Hoje, as pessoas do norte da Europa podem traçar a maior parte dos próprios ancestrais até os Yamnaya. Mais ao sul, a ascendência Yamnaya é menos comum. Em vez disso, as pessoas dessa região têm mais ascendência de agricultores do Oriente Médio e dos primeiros caçadores-coletores da Europa.
Willerslev e colegas se perguntaram que tipo de variações genéticas cada grupo antigo carregava e como elas afetavam a saúde desses povos. Para descobrir isso, os pesquisadores estudaram descendentes vivos.
Eles aproveitaram o UK Biobank, um enorme banco de dados de DNA e informações médicas. A maioria dos 433.395 voluntários que os cientistas estudaram nasceu na Grã-Bretanha, mas 24.511 nasceram em outros países.
Os pesquisadores conseguiram associar milhares de variantes genéticas do banco de dados ao aumento do risco de uma ampla gama de doenças. Em seguida, eles compararam o DNA dos voluntários com os fragmentos genéticos de esqueletos antigos.
Uma análise revelou que os caçadores-coletores da Europa Ocidental, por exemplo, carregavam muitas das variantes que aumentam o risco de colesterol alto, pressão alta e diabetes. Outra mostrou que os antigos agricultores do Oriente Médio carregavam uma grande quantidade de variantes ligadas à ansiedade e a outros transtornos de humor.
Essas descobertas não significam necessariamente que esses povos antigos sofriam dessas doenças. As variantes genéticas criam a armadilha, mas muitas vezes é o ambiente que a aciona.
O diabetes, por exemplo, tem se tornado cada vez mais comum no mundo moderno, em parte devido aos alimentos baratos e carregados de açúcar que compõem uma parte cada vez maior de nossa dieta. Nos séculos anteriores, os genes de alto risco para o diabetes podem não ter tido a oportunidade de dar origem à doença.
Em alguns casos, descobriram Willerslev e colegas, essas variantes genéticas proporcionaram aos povos antigos uma vantagem de sobrevivência.
As variantes que aumentam o risco de esclerose múltipla, por exemplo, tornaram-se cada vez mais comuns entre os Yamnaya. Os nômades que as carregavam parecem ter tido mais descendentes do que aqueles que não as carregavam.
“Essas variantes que estão causando o alto risco de esclerose múltipla atualmente devem ter sido benéficas no passado”, disse Willerslev.
Os novos estudos dão algumas dicas importantes sobre qual é esse benefício. Alguns dos esqueletos continham DNA não apenas de humanos, mas também de vírus e bactérias causadores de doenças.
Muitos desses agentes patogênicos não apareceram entre os caçadores-coletores ou mesmo entre os primeiros agricultores da Europa. Mas os restos mortais de Yamnaya continham as assinaturas genéticas de vários patógenos, incluindo o que causava a peste.
“Essas variantes parecem proporcionar algum tipo de proteção contra doenças infecciosas”, disse Willerslev.
Vários estudos sobre esclerose múltipla sugerem que as variantes que aumentam o risco da doença também tornam mais agressivo o ataque do sistema imunológico contra vírus e bactérias.
Willerslev e colegas argumentaram que os Yamnaya eram mais vulneráveis a doenças animais do que os humanos anteriores. Os Yamnaya dependiam de animais para obter carne e leite e estavam em contato constante com os rebanhos enquanto se deslocavam pelas estepes.
Essas condições proporcionaram uma nova oportunidade para que as doenças chegassem aos seres humanos. Em resposta, os Yamnaya desenvolveram genes relacionados ao sistema imunológico que os ajudaram a se defender dos novos inimigos.
“Eles apresentaram um caso muito, muito convincente”, disse Yassine Souilmi, genomicista da Universidade de Adelaide, na Austrália, sobre Willerslev e os colegas. “Ficarei chocado se outros testes experimentais não corresponderem às conclusões deles.”
O Dr. Lars Fugger, especialista em esclerose múltipla da Universidade de Oxford, que colaborou com Willerslev nos novos estudos, disse que a doença pode não ter se tornado comum até as últimas décadas. Segundo ele, no ambiente atual, com menos doenças infecciosas do que nos séculos passados, um sistema imunológico forte tem maior probabilidade de falhar, atacando o próprio corpo.
“Muitos de nós estamos vivendo em um ambiente extremamente limpo”, disse Fugger. “O equilíbrio não existe mais.”
A compreensão das raízes evolutivas da esclerose múltipla poderia orientar os pesquisadores para melhores tratamentos para a doença. Atualmente, os únicos tratamentos eficazes são medicamentos que suprimem o sistema imunológico. Para Fugger, esses medicamentos parecem ser instrumentos contundentes contra uma parte delicadamente equilibrada de nossa biologia.
“Em vez de simplesmente eliminá-lo, deveríamos tentar descobrir com mais detalhes como ele está desequilibrado e, então, tentar recalibrá-lo”, disse ele.
Os pesquisadores estão iniciando análises semelhantes de outras doenças, como a esquizofrenia e a psoríase. “Isso é apenas o começo”, disse Fugger.
Por enquanto, eles continuam a contar com o UK Biobank, o que significa que os resultados deles serão em grande parte limitados a genes que influenciaram a saúde dos europeus do norte. “Seria fenomenal ter estudos semelhantes em outras partes do mundo”, disse Lluis Quintana-Murci, geneticista evolucionário do Institut Pasteur que não participou da pesquisa.
Mas há poucas oportunidades para realizar tais estudos. Muitos países não possuem registros eletrônicos de saúde detalhados, por exemplo. Além disso, comportamento antiético de cientistas ocidentais fez com que muitas populações indígenas não se interessassem em doar DNA para esses esforços.
Souilmi, que está ajudando a criar um banco de dados para os indígenas australianos, disse que o caminho evolutivo diferente de cada população poderia revelar percepções importantes sobre a biologia humana em geral. “Ao estudar outras partes do mundo, estamos na verdade ampliando nossa compreensão de todas as condições humanas atuais”, disse ele.
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