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‘Crise de masculinidade’? Para a China, os meninos precisam de orientação

O ministério da educação planeja reforçar as aulas de educação física depois de um alto funcionário ter afirmado que as professoras e a cultura pop deixaram os meninos 'fracos, inferiores e tímidos'

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Por Tiffany May

HONG KONG - As autoridades governamentais da China acreditam que os meninos estão ficando mais afeminados, e querem deixá-los mais durões.

Na mais recente tentativa de enfrentar aquilo que os acadêmicos e a mídia jornalística chamam de "crise de masculinidade", o ministério da educação prometeu enfatizar o “espírito do yang", ou os atributos masculinos, com a contratação de mais professores de esportes e a reformulação das aulas de educação física para o ensino infantil e fundamental.

Um programa de treinamento após as aulas em Pequim em 11 de novembro de 2018, com o objetivo de corrigir uma percepção de "falta de masculinidade" entre os meninos. Foto: Gilles Sabrie/The New York Times

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O plano, anunciado em resposta ao apelo de um alto funcionário para “impedir a feminização dos rapazes", foi divulgado em janeiro. Os detalhes são escassos, mas foi o bastante para despertar a indignação na internet, mobilizando um forte debate nas redes sociais. Uma das hashtags associadas foi visualizada 1,5 bilhão de vezes no Weibo, popular plataforma de microblogs.

Alguns usuários manifestaram nas redes sociais seu apoio à medida, e um deles escreveu, “É difícil imaginar como meninos tão afeminados poderiam defender seu país diante da ameaça de uma invasão externa". Mas, para outros, é clara a discriminação sexual e o aprofundamento dos estereótipos de gênero.

Até a mídia estatal pareceu questionar a proposta do ministério. A emissora nacional de TV, CCTV, publicou em sua conta do Weibo: “O ensino não se resume a cultivar ‘homens’ e ‘mulheres’. O mais importante é desenvolver a disposição em assumir responsabilidades".

A emissora também apresentou uma interpretação mais branda do yang, escrevendo, “Os homens demonstram o ‘espírito do yang’ na sua criação, no seu espírito e no seu físico, que revela um tipo de beleza, mas o ‘espírito do yang’ não se define apenas como ‘comportamento masculino’”.

Nos anos mais recentes, conforme o país buscou reforçar suas forças armadas e acertar as contas com uma geração de crianças mimadas, principalmente meninos, nascida durante a vigência da política de filho único, uma ideia mais estridente de masculinidade veio à tona. Censores da televisão borram os brincos dos astros do pop. Atores com pinta de galã foram ridicularizados publicamente como “carne fresca”, e pais matricularam seus filhos em acampamentos de treinamento rigoroso, onde se tornarão “homens de verdade".

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O plano do ministério da educação é uma resposta a uma proposta feita em maio por Si Zefu, importante funcionário da Comissão Permanente de Consulta Política Popular. Batizada de “Proposta para evitar a feminização dos rapazes", a ideia de Si diz que “muitos, muitos mais” homens devem ser contratados como professores de educação física para exercer uma “influência masculina” nas escolas.

Em comunicado, Si disse que a predominância de professoras no ensino infantil e a popularidade de “meninos bonitos” na cultura pop deixou os meninos “fracos, inferiores e tímidos”. Ele também lamentou que os meninos não mais sonhassem em ser heróis de guerra, alertando que tal tendência poderia colocar em perigo o povo chinês.

No ano passado, a agência estatal de notícias, Xinhua, publicou uma reportagem a respeito do desequilíbrio de gêneros entre os professores de educação física e das dificuldades em atrair homens para essa profissão de baixos salários, atualmente dominada pelas mulheres. No passado, as agências de notícias oficiais também responsabilizaram os jogos eletrônicos, a masturbação e a falta de exercício como fatores que deixavam os rapazes inadequados para o serviço militar.

Mark Ma, 18 anos, aluno do ensino médio em Shenzhen, disse ver com bons olhos uma reforma da educação física, mas não acredita que isso tenha efeito na formação da masculinidade.

“A educação física no ensino médio precisa certamente de reformas, pois poucos se importam com ela. Os alunos só pensam nas notas acadêmicas", disse ele. “Lembro de ver muitos colegas sentados na arquibancada durante as aulas de educação física, fazendo lição de casa.”

Ele acrescentou não acreditar que “professores de educação física são altamente valorizados nas escolas; essas novas políticas e a melhoria nos benefícios podem atrair mais pessoas para a área".

Em se tratando de fomentar entre os meninos o “espírito do yang”, ele disse, “Acho que o principal foco da medida é melhorar a força física, e não está claro o que querem dizer com ‘masculinidade’". Ele acrescentou: “Acho que isso vem da criação e dos hábitos da pessoa. Pessoalmente, não acho que o uso desse rótulo tenha grande efeito nos hábitos de educação física".

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Ainda que o novo plano do ministério da educação não tenha proposto um tratamento diferente para meninos e meninas, educadores como Liu Wenli, professora da Universidade Normal de Pequim e especialista em saúde e educação sexual, enxergam alguns riscos. Liu disse que a simples referência à “feminização dos rapazes” pode levar a um aumento nos casos de bullying entre os estudantes por causa da expressão do seu gênero, identidade e orientação sexual.

“Os educadores não podem pregar o fim do bullying nas escolas e, ao mesmo tempo, fomentar um ambiente que favorece esse bullying", escreveu ela no Weibo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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