PARKLAND, FLÓRIDA - Kelly Plaur ainda tem pesadelos praticamente todas as noites. Pela manhã, ela os relata à mãe, embora o tema seja sempre o mesmo: o horror testemunhado por ela na Escola Marjory Stoneman Douglas High no ano passado, quando um atirador abriu fogo em sua sala de aula, matando dois estudantes e ferindo quatro outros colegas.
Algumas semanas atrás, Kelly, 18 anos, teve que desistir de um curso de treinamento para paramédicos quando foi tomada pela ansiedade ao transportar uma vítima baleada. A visão de certos tipos de cortinas é suficiente para deixá-la inquieta, lembrando os buracos de bala feitos nas janelas da escola. “O pânico é disparado por detalhes que eu consideraria inofensivos", disse ela.
Para jovens como Kelly, passado mais de um ano após o massacre na escola de Parkland que deixou 17 mortos, a vida continua repleta de memórias traumáticas, um subproduto duradouro da epidemia de violência com armas de fogo nos Estados Unidos. Para muitos, as preocupações voltaram no mês passado quando dois adolescentes que frequentavam a escola Stoneman Douglas tiraram as próprias vidas em um intervalo de poucos dias. Então, o pai de uma garotinha morta no ataque de 2012 na escola Sandy Hook Elementary, em Newtown, Connecticut, também morreu em um caso que as autoridades identificaram como suicídio.
Especialistas dizem que a motivação por trás de um suicídio é complexa, e as mortes recentes continuam sob investigação. Mas os três casos recentes, muito divulgados e ocorridos em um intervalo de dez dias em dois lugares definidos por tragédias semelhantes, deixaram claro o quanto dolorosas lesões emocionais podem perdurar muito depois do último disparo.
Anos mais tarde, muitos sobreviventes de ataques a tiros dizem enfrentar contínuas dificuldades para superar seu trauma. Ficam sobressaltados com ruídos altos. O pipocar dos tiros volta durante os sonhos. Ao falar a respeito da violência causada pelas armas, suas costas tensionam.
Imediatamente depois de um ataque desse tipo, escolas e comunidades se reúnem, oferecendo apoio mútuo, orientação e terapia. Os estudantes se sentem envolvidos por um casulo de empatia formado pelos colegas e professores. Todos querem saber se eles estão bem. Mas, então, o tempo passa.
Hollan Holm tinha 14 anos quando, no dia 1º de dezembro de 1997, um colega abriu fogo contra uma roda de oração na Escola Heath High, em West Paducah, Kentucky. Três alunos morreram e cinco outros ficaram feridos, entre eles Holm. Uma bala acertou seu crânio de raspão. Ele se tornou extremamente sensível a determinados sons, como fogos de artifício e bexigas estourando. Mas não aceitou orientação terapêutica, convencido que seria capaz de simplesmente seguir com sua vida.
Agora, aos 36 anos, Holm ainda evita se sentar com as costas voltadas para a entrada de um cômodo. Costuma fazer uma avaliação das ameaças que o cercam. No ano passado, consultou um especialista em trauma. “Não podemos deixar o ataque definir o resto de nossas vidas", disse ele. “Mas não é algo que possamos simplesmente deixar para trás.” Fatores como idade, proximidade em relação ao atirador ou o fato de a pessoa ter sido ferida ou testemunhado alguém ser baleado influenciam a capacidade de superação do evento.
“A reação mais exacerbada e imediata pode ser amenizada com o tempo; os sintomas podem diminuir", disse a psicóloga Rochelle F. Hanson, especialista no tratamento de traumas da Universidade de Medicina da Carolina do Sul. “Nossa preocupação é com pessoas que, passados três ou quatro meses, ainda estão apresentando sintomas relacionados ao trauma. São essas que chamam a atenção.”
Ataques a tiros em escolas podem afetar centenas de pessoas de uma vez, incluindo alunos, professores, pais e funcionários dos serviços de emergência. Em Parkland, a escola Stoneman Douglas tinha mais de três mil alunos. “É difícil sair da cama e ir para a escola dia após dia", disse Alex Wind, 18 anos, aluno do último ano. O edifício do primeiro ano, onde o ataque ocorreu, continua de pé. “É muito difícil passar por ali todos os dias.”
Logo após uma tragédia, as escolas são inundadas com terapeutas e animais de companhia. Mas, se as vítimas estiverem em estado de choque, talvez seja cedo demais para processar aquilo que vivenciaram. Quando superam o choque, é possível que esses serviços não tenham mais a mesma disponibilidade.
“É mais ou menos como um furacão: todos querem ajudar assim que a tragédia ocorre", disse Sarah Franco, diretora executiva de uma organização de caridade do Sul da Flórida que administra um novo centro de bem estar e saúde em Parkland. “Agora, um ano depois, temos que dar um passo atrás e analisar a situação e os resultados.
As pessoas estão procurando esses serviços? A resposta é não.” Os aparentes suicídios de Sydney Aiello, 19 anos, formado na Stoneman Douglas, e Calvin Desir, 16 anos, aluno do segundo ano, levaram lideranças locais a abrir o novo centro, cuja inauguração estava marcada para daqui a cerca de um mês.
Programas semelhantes foram abertos após outros ataques em escolas, como o de Newtown, onde Jeremy Richman, 49 anos, que perdeu a filha de seis anos, Avielle, em 2012, foi encontrado morto no dia 25 de março. Naquele mesmo dia, o centro de Parkland foi aberto. Folhetos empilhados na entrada insistiam aos pais para que perguntassem aos filhos se pensaram em cometer suicídio e, principalmente, se chegaram a planejar o ato, um sinal de alto risco.
Para os sobreviventes, buscar ajudar pode ser um passo difícil. Lisa Hamp, agora com 32 anos, estava numa aula de computação do terceiro ano do Instituto Politécnico e Universidade Estadual da Virgínia quando um atirador entrou no edifício. “Eu vi tudo, incluindo os cadáveres", lembrou ela.
Depois de escapar fisicamente ilesa de um ataque a tiros que deixou 32 mortos, Lisa criou na cabeça uma hierarquia das pessoas que mereciam ajuda: em primeiro lugar estavam aqueles que perderam entes queridos, seguidos pelos feridos. “Nós, que sobrevivemos sem ferimentos, nos consideramos os menos importantes", disse ela.
“Achamos que basta superar o ocorrido e seguir com a vida.” Mas ela nunca conseguiu "superar o ocorrido". Lisa se formou em matemática e fez pós-graduação em pesquisa operacional e economia aplicada. Em seu íntimo, sofria de ansiedade aguda. “Eu vivia preparada para o segundo ataque da minha vida", disse ela.
Transformou o estresse em uma obsessão com exercícios físicos e controle do peso, desenvolvendo um distúrbio alimentar. Anos se passaram antes que ela buscasse orientação terapêutica, que ela diz ter ajudado. "Infelizmente, acho que as pessoas mais traumatizadas são difíceis de detectar", disse Janelle Perritte, assistente social e ex-aluna da escola Stoneman Douglas. “Elas se esforçam para manter o isolamento.”
Randee Gregory estava no terceiro ano no dia 26 de setembro de 1988 quando um jovem entrou na Escola Oakland Elementary, em Greenwood, Carolina do Sul, e começou a atirar. Ainda que uma menina sentada na sua frente tenha morrido, Randee, hoje com 39 anos, não consegue se lembrar do ataque. “Lembro de ser empurrada pela porta e de correr pelo corredor", disse ela.
Todos logo voltaram às aulas. Não houve nenhum tipo de orientação terapêutica. Às vezes, Randee, que trabalha como auditora da receita estadual, ainda sonha que alguém a está perseguindo e tentando baleá-la. Sua filha de cinco anos, Rylee, começará a frequentar a escola este ano. “Não sei se as escolas se tornaram mais seguras".
É a mesma dúvida de Jordan Gomes, 15 anos, que tinha nove anos e estudava no quarto ano em Sandy Hook quando um jovem massacrou 20 crianças e seis adultos no dia 14 de dezembro de 2012. “Nada pode reparar o que aquele dia destruiu em mim e nas demais crianças daquela escola", disse ela. “Quando vou à escola todos os dias, meu maior medo não são as lições de casa nem as provas, e sim a possibilidade de não chegar vivo ao fim do dia. Talvez eu sobreviva, talvez meus amigos não.”
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