Melodine Jeptoo nunca esquecerá a primeira vez que viu um enxame de gafanhotos. Movendo como uma nuvem escura, os insetos cobriram o céu e caíram sobre ela como granizo.
“Quando estão voando eles atingem você duramente”, disse Lepto, que vive no Quênia e trabalha na instituição sem fins lucrativos PlantVillage, que utiliza tecnologia para ajudar os agricultores a se adaptarem à mudança climática.
Em 2020, bilhões de gafanhotos apareceram em países da África Oriental que não viam esses insetos há décadas e que foram transportados para a região pelo clima fora do comum causado pela mudança climática. A última vez que o Quênia teve de lidar com a praga nessa escala foi há mais de 70 anos. Etiópia e Somália, há mais de 30 anos. Nove milhões de agricultores e pastores nesses três países que arcaram com os danos viram seu meio de vida duramente afetado.
“As pessoas não sabiam o que fazer, correndo sem direção em pânico”, disse Keith Cressman, funcionário da FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentos. “Eles não enfrentavam algo dessa magnitude desde o início da década de 1950”.
Mas mesmo que os enxames de 2020 tenham sido ruins, os danos causados poderiam ter sido muito piores. Embora o clima tenha contribuído para diminuir a reprodução dos insetos, o sucesso resultou principalmente de uma operação implementada para combater os gafanhotos apoiada numa tecnologia que rapidamente foi criada nos caóticos meses após a chegada dos insetos à África Oriental. Essa operação pioneira provou ser tão eficaz na contenção dos invasores que alguns especialistas afirmam que ela pode transformar a maneira de controlar outros desastres naturais no mundo.
“Seria bom não deixar essa crise ser desperdiçada”, disse David Hughes, entomologista da Penn State University. “Temos de usar essa lição não só para ser adaptada à próxima crise de gafanhotos, mas para a mudança climática no geral”.
Os gafanhotos do deserto são como os personagens do livro O médico e o monstro do mundo dos insetos. Normalmente, insetos herbívoros como os gafanhotos passam seu tempo vivendo solitariamente nos desertos do Norte da África e Oriente Médio. Mas quando chegam as chuvas, eles mudam a cor de um marrom apagado para um amarelo intenso e se tornam gregários, formando grupos de mais de 15 milhões de insetos por milha quadrada (ou 2,5 quilômetros quadrados). Em um dia, esse enxame de gafanhotos devora uma quantidade de comida equivalente à consumida por mais de 13 mil pessoas.
A praga de gafanhotos que atingiu a África Oriental em 2020 já vinha se formando há dois anos. Em 2018, dois fortes ciclones provocaram muita chuva numa área remota da Arábia Saudita, causando um aumento de oito mil vezes no número de gafanhotos. Em meados de 2019, ventos empurraram os insetos para o Chifre da África, onde um outono úmido aumentou ainda mais a sua população. Um ciclone fora do comum na Somália no início de dezembro finalmente provocou uma real situação de emergência.
“Há dez anos não tínhamos praticamente nenhum ciclone no Oceano Índico. Hoje registramos 12 a cada ano - uma consequência da mudança climática”, disse Hughes.
Países como Sudão e Eritreia, que regularmente enfrentam pequenos enxames sazonais de gafanhotos, têm equipes treinadas para localizar os insetos e reconhecerem em que estágio do ciclo de vida eles estão. Essas equipes usam um programa criado para transmitir dados sobre os gafanhotos por satélite para autoridades nacionais e internacionais de modo que os especialistas conseguem projetar estratégias de controle apropriadas.
Mas os países que não estão na linha de frente do combate a esses enxames de gafanhotos e querem começar a usar esse sistema se deparam hoje com um problema de tecnologia típico: a versão do equipamento onde foram criados os programas de monitoramento dos gafanhotos não é mais fabricada e os equipamentos mais recentes não são compatíveis com o software. E mesmo que o hardware estivesse disponível, em 2020 a África Oriental não tinha especialistas aptos para identificar os gafanhotos.
Com esses enxames de repente cobrindo uma área do Quênia maior do que o estado americano da Nova Jersey, as autoridades foram encarregadas de criar uma operação de combate basicamente do zero. Coletar dados detalhados e confiáveis sobre os insetos foi o primeiro passo crucial. “Dizer ‘há gafanhotos no norte do Quênia não ajuda em nada’”, disse Cressman. “Precisamos de coordenadas de latitude e longitude em tempo real”.
Em vez de tentar reescrever o software para tablets mais novos, Cressman achou que seria mais eficaz criar um simples aplicativo de smartphone que permitisse a qualquer pessoa coletar dados como um especialista. Ele então recorreu a Hughes, que havia criado uma ferramenta similar para a FAO para monitorar uma praga que vinha devastando as plantações, a chamada lagarta-do-cartucho, por meio da empresa fundada por ele, a PlantVillage.
O aplicativo da PlantVillage usa inteligência artificial e aprendizado de máquina para ajudar os agricultores em 60 países, particularmente na África, a diagnosticar problemas nos seus campos. Tomando emprestado o modelo, Hughes e seus colegas criaram o novo aplicativo, eLocust3m, em apenas um mês.
Ao contrário do programa anterior, qualquer pessoa com um smartphone consegue baixar o aplicativo. Ele exibe imagens de gafanhotos nos diferentes estágios dos seus ciclos de vida, o que ajuda o usuário a identificar o que está vendo em campo. Coordenadas de GPS são automaticamente registradas e há algoritmos para checar as fotos fornecidas em cada entrada. A Garmin International também ajudou com outro programa que funciona com base em dispositivos de transmissão via satélite.
“O aplicativo é fácil de usar”, disse Jeptoo, da PlantVillage.
No ano passado ela contratou e treinou rastreadores de gafanhotos em quatro regiões do Quênia duramente afetadas pelos insetos.
No ano passado, mais de 240 mil registros de gafanhotos vieram da África Oriental coletados por equipes de reconhecimento, pessoal treinado pelo governo e cidadãos. Mas essa foi apenas a primeira etapa. Os países tinham de, em seguida, interpretar os dados de uma maneira sistemática para eliminar os gafanhotos. Nos primeiros meses, contudo, as autoridades implementaram estratégicas toscas, disse Cressman, e a região inteira tinha apenas quatro aviões para pulverização de pesticidas.
Quando Batian Craig, diretor da empresa de logística e segurança 51 Degrees, focada na proteção da vida selvagem, leu uma reportagem sobre os gafanhotos em que Cressman foi citado e achou que poderia ajudar.
Ele e seus colegas, sediados no Lewa Wildlife Conservancy, na região central do Quênia, realizam inspeções aéreas regulares contra caça ilegal que poderiam ser usadas para rastrear e destruir os enxames de gafanhotos. E eles tinham uma estreita comunicação com as comunidades rurais afetadas pelos insetos.
A 51 Degrees também utiliza um programa gratuito chamado EarthRanger. Criado pela Vulcan, empresa filantrópica de Seattle, fundada por Paul Allen da Microsoft e sua irmã Jody Allen, o programa compila e analisa dados geográficos que vão desde os de locais de rinocerontes e guardas florestais a dados de sensores e imagens remotas.
Os engenheiros da Vulcan aceitaram customizar uma versão do EarthRanger para os gafanhotos, integrando os dados do programa eLocust e os de computadores instalados nos aviões pulverizadores de pesticidas.
Lewa Conservancy rapidamente se tornou sede do controle e da inspeção aérea de toda a região. Em junho de 2020 esses esforços começaram a dar resultados. Os gafanhotos foram impedidos de se propagarem para a região do Sahel e oeste do Senegal.
“Se não tivéssemos contido o enxame, os gafanhotos teriam chegado ao Chade, Nigéria, Mali e Mauritânia'', disse Cyril Ferrand, líder da equipe da FAO. “Conseguimos evitar uma catástrofe muito maior”, afirmou ele.
A prole dos enxames em 2020 continua a causar danos por toda a região da África Oriental. Mas agora os países estão mais capacitados para combater os insetos, equipados com a nova tecnologia, 28 aviões e milhares de rastreadores treinados. Só em fevereiro, pilotos de patrulhamento de gafanhotos no Quênia, Etiópia e Somália voaram o equivalente a três vezes a circunferência do globo. Pulverizaram inseticidas nos insetos antes de eles terem tempo para amadurecer, impedindo-os de se multiplicarem e se disseminarem para Uganda e Sul do Sudão, como ocorreu no ano passado.
“A situação é ainda muito grave. Mas se compararmos agora com um ano atrás, os países estão mil vezes melhor preparados”.
A nova metodologia pode dar ainda mais resultados no monitoramento, combate e até para impedir futuros desastres. Hugues agora vem trabalhando com especialistas da National Oceanic and Atmospheric Administration e o MIT - Instituto de Tecnologia de Massachusetts, com vistas a utilização de estudos sobre gafanhotos para criar modelos que possam prever futuras pragas. Isso permitirá aos países adotarem estratégias de controle preventivas menos prejudiciais do que os pesticidas.
Esse mesmo método pode ser usado para o combate de outros desastres relacionados com o clima, como inundações, secas, e surtos de pragas, disse Hughes.
“Os gafanhotos mostram como podemos trabalhar em colaboração com a inteligência artificial. Este pode ser um fator que vai mudar o jogo para centenas de milhões de pessoas à medida que nos adaptamos à mudança climática”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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