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Transformando os gestos cotidianos em arte

A coreógrafa Katja Heitmann coleta hábitos e maneirismos das pessoas - como elas andam, ficam de pé, beijam, dormem e se mexem - para seu projeto de dança em andamento

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Por Zoey Poll

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE — Algumas vezes por dia, Mahat Arab, um artista holandês de 26 anos, estala os dedos da mão esquerda durante tarefas que o deixam ansioso, como dirigir um carro ou falar ao telefone. Karolien Wauters, uma bailarina de 23 anos, costuma enfiar a mão no cós de sua legging. E Chandra Merx, uma funcionária do Conselho Municipal de Maastricht, de 41 anos, levanta as sobrancelhas, não apenas como uma expressão de surpresa, mas também como um reflexo quando está com pressa ou perdida em pensamentos.

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Para Katja Heitmann, esses tipos de movimentos – uma rotina inconsciente, um tique, um jeito distinto de andar – são fundamentais para a personalidade única de cada pessoa. Heitmann, uma coreógrafa de Tilburg, acredita que todo mundo tem pelo menos um gesto único. “Se você prestar atenção, sabe que não há dois corpos se movendo da mesma maneira”, ela disse.

Heitmann, de 35 anos, vem coletando exemplos desses movimentos nos últimos três anos. Em 2019, ela lançou uma chamada para “doações”, convidando as pessoas a contribuir com seus próprios hábitos e maneirismos. Sua coleção agora contém os movimentos de 1.023 indivíduos – como andam, como beijam, como dormem, como ficam em pé, como se mexem.

O projeto, chamado Motus Mori (que significa “movimento que está morrendo”), conta com uma equipe de dez bailarinos para manter esses gestos vivos. Nada sobre os movimentos é fotografado ou filmado, ou mesmo registrado por escrito, exceto por um cartão minimalista por doador.

“Em nossa sociedade atual, estamos tentando capturar a humanidade em dados”, disse Heitmann. “Mas estamos perdendo algo dessa forma.”

Seu inventário é analógico e efêmero: os bailarinos registram gestos em sua memória muscular. Eles encenam frequentes apresentações de dança de cinco horas abertas ao público, onde representam os movimentos de centenas de pessoas. “O arquivo”, como disse um bailarino, “são nossos corpos”.

O trabalho se encaixa na prática de longa data de coreógrafos que se inspiram na vida cotidiana, como Pina Bausch, que se inspirou nas memórias e emoções de seus colaboradores, e Twyla Tharp, que incorpora ações corriqueiras como cair e pular em suas performances. Mas, em vez de observar a distância, Heitmann e seus bailarinos trabalham diretamente com voluntários para descobrir quais movimentos salvar.

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Bailarinos reinterpretam movimentos de doadores de gestos na coreografia de Katja Heitmann Foto: Melissa Schriek/The New York Times

O processo de entrevista começa assim que um voluntário entra pela porta. Um dos bailarinos de Heitmann acompanha discretamente a pessoa pelo estúdio por uma hora, perguntando sobre as atividades cotidianas, como trabalhar ou se locomover, enquanto imita a anatomia do indivíduo, desde a curva da coluna até a curvatura dos pés.

É tentador para os voluntários sentarem-se mais eretos do que o normal ou realizarem uma versão ideal de si mesmos. “Eu realmente queria me sair bem”, admitiu Karen Neervoort, de 64 anos, reitora de uma escola local de artes cênicas que foi uma das primeiras doadoras de gesto. Mas os bailarinos incentivam a franqueza compartilhando histórias sobre seus próprios corpos ou exemplos de outros participantes.

“Sempre pensei que, em geral, as pessoas eram reservadas, mas nos primeiros minutos elas nos dizem muito”, disse o bailarino Wies Berkhout. “Elas confiam em nós com suas inseguranças e traumas.”

O fato das entrevistas serem essencialmente privadas (apenas primeiros nomes e idades) e acontecerem em meio a encenações luminosas e uma trilha sonora ambiente e lenta ajuda. “Você está entrando em um espaço muito específico, uma instalação de arte, algo que já te abre”, disse um dos participantes, Ranti Tjan, de 56 anos, diretor da Royal Academy of Art em Haia.

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Como em uma peça anterior, Pandora’s DropBox, uma meditação sombria sobre a busca da perfeição, Heitmann concebeu Motus Mori como uma resposta ao que ela vê como uma tendência cultural em direção à homogeneidade - evidência que ela encontra em exemplos tão variados como o planejamento urbano em Tilburg e o perfil odontológico uniforme de seus alunos. (“Quando sorriem para mim, todos têm os mesmos dentes.”)

Para Heitmann, não existe movimento “bom” ou “ruim”, desde que seja autêntico: um alongamento comum (pulsos, pescoço, dedos dos pés) ou forma de se coçar (com dois dedos ou roçando o corpo) vale tanto quanto algo sentimental (um beijo na testa, um aperto de mão infantil) ou complexo (técnicas de artes marciais, rituais religiosos).

Há também movimentos que acompanham música clássica (dedo indicador regendo), televisão (de cabeça para baixo no sofá) e Instagram (caras de pato). Há expressões de dor (estremecimento), tédio (girar o polegar), êxtase (dançar), terror (paralisia), velhice (tirar dentaduras) e insônia (andar de um lado para o outro). Para cada movimento imbuído de significado existem outros tantos sem, sejam hábitos distraídos (mexer no anel) ou maus hábitos (ranger os dentes ou roer as unhas).

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Terminada a entrevista, a bailarina reinterpreta os movimentos do doador na linguagem lenta e precisa da coreografia de Heitmann. Suas apresentações, muitas das quais abertas à participação do público, abordam temas contemporâneos, como identidade e tecnologia (“Siri Loves Me”, “For iTernity”), em um estilo tenso, minimalista e em câmera lenta. Os bailarinos tremem e suam visivelmente, esforçando-se para manter seus corpos imóveis, até mesmo suas pálpebras. Os gestos originalmente naturais e fluidos do voluntário são quebrados em fragmentos isolados; um aceno ou o ato de cruzar um tornozelo atrás do outro pode durar minutos, uma estética deliberada que mantém os movimentos em um afastamento distante e analítico.

O gesto é o vocabulário e a coreografia é a gramática”, explicou Heitmann, acrescentando que sua coreografia pretende transmitir “um sentimento de melancolia”.

Os movimentos de outras pessoas ocasionalmente se infiltram na vida dos bailarinos. Berkhout, que trabalha em tempo integral como guardiã da coleção, notou que gestos esquecidos às vezes ressurgem inesperadamente. Certa manhã, ela acordou em posição fetal, com as mãos cruzadas entre os joelhos, embora geralmente durma com os membros esticados. A pose pertencia a uma ganense de 40 anos que ela havia entrevistado no ano anterior. “Essa é a Dora”, ela pensou.

Não há data de término para o arquivo, que é financiado em grande parte por instituições culturais holandesas e várias fundações sem fins lucrativos, bem como por residências em vários museus e galerias europeus. Em teoria, quando um bailarino se aposenta, outro herdará o papel e seus gestos associados. Esse compromisso torna o trabalho especialmente valioso para pessoas que lidam com perdas. Heitmann recebeu pedidos de entrevistas em centros de cuidados paliativos e hospitais. Após a morte de uma jovem belga, sua mãe e seu namorado doaram movimentos em seu nome. Sua família assistiu a várias apresentações, lembrou Heitmann, “como uma forma de se despedir ou memorizar juntos”.

Heitmann também contribuiu com movimentos em segunda mão que ela associa ao seu pai. Após sua morte, ele deixou para trás apenas os extratos bancários e relatórios de impostos que o governo alemão era obrigado a manter em seu nome. Aquilo retratava “uma imagem muito unilateral”, ela disse.

Os bailarinos agora executam seus movimentos como de qualquer outro doador: a forma como o pai de Heitmann, que era professor de dança, coçava o couro cabeludo, ou como instintivamente contraía a barriga ao passar em frente a um espelho do estúdio.

Os gestos não eram particularmente importantes, ela observou, mas seus impostos também não eram. “É uma memória mais humana”, ela disse. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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