THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE – Vestidos de preto, os atores se movimentavam por uma sala de ensaio, preparando a nova peça – a história de um dissidente ucraniano que morreu há décadas em um campo de prisioneiros russo. Durante um intervalo, abraçaram-se, formando um círculo, rindo e conversando.
Embora a peça seja ambientada décadas atrás, para esses atores o tema é emocionante, e o simples fato de ensaiar é um triunfo. Eles sobreviveram ao cerco de Mariupol pelas forças russas no início do ano – e à destruição do teatro que era sede da companhia. “Tem um ditado que diz: ‘O rei está morto. Vida longa ao rei.’ Digo, portanto: ‘O teatro morreu. Vida longa ao teatro’”, disse Liudmyla Kolosovych, diretora da companhia.
O Teatro Acadêmico Regional de Mariupol foi destruído por um ataque aéreo russo em 16 de março em meio ao cerco da cidade, que durou semanas, um dos primeiros exemplos da chocante brutalidade russa na guerra da Ucrânia. Antes do ataque, a palavra “crianças” fora escrita como um alerta em grandes letras brancas no chão do lado de fora do teatro. Centenas de pessoas se abrigaram no teatro durante o cerco; entre os quais, quatro membros da companhia.
Um relatório da Anistia Internacional classificou o ataque como “um claro crime de guerra”, calculando que o bombardeio matou pelo menos uma dúzia de pessoas, “e provavelmente muitas mais”. Foi impossível determinar o número preciso de mortos porque a cidade permanece sob o controle russo desde a queda da resistência, no fim de maio.
Vira Lebedynska, atriz de 64 anos, relembrou o dia do ataque: “Teve uma explosão, as paredes começaram a desmoronar e depois ouvi gritos. Não conseguíamos nos mexer.” Ela buscou abrigo em uma sala no subsolo com uma colega e a família dela, mas, antes do bombardeio, a água e a comida já estavam acabando. Lebedynska contou que perto de mil pessoas estavam dentro do teatro quando este foi atingido pelo míssil, e que acredita que centenas delas foram mortas. Depois do impacto inicial, o marido de sua colega subiu pelas escadas destroçadas e, na volta, disse: “O teatro não existe mais.” Por fim, Lebedynska e seu grupo fugiram a pé para uma cidade próxima, e se juntaram a um comboio humanitário que os levou a um local seguro.
Ao todo, 13 membros da companhia teatral de Mariupol sobreviveram às semanas de bombardeamento da cidade. Alguns foram levados para campos de triagem russos; outros foram expulsos de casa. Alguns se refugiaram em um porão, e houve quem não conseguisse enterrar os parentes que morreram ao seu lado.
Nas últimas semanas, o grupo voltou a se reunir na cidade de Uzhhorod, no oeste da Ucrânia – ondem compartilham um dormitório –, para ensaiar a nova peça, baseada na vida e nas obras de Vasyl Stus, poeta ucraniano, ativista dos direitos humanos e herói nacionalista que morreu em um campo de prisioneiros soviético em 1985. Ele viveu na região de Donetsk quando esta era parte da antiga União Soviética, e foi perseguido por sua luta para desenvolver a língua e a literatura ucranianas, e pela franca oposição ao governo russo. Stus foi julgado duas vezes e morreu em uma prisão soviética durante uma greve de fome, em 1985. A independência da Ucrânia chegou meros seis anos mais tarde, em 1991. “É um pouco assustador encenar essa peça, mas o mundo está à espera de uma estreia da companhia teatral de Mariupol”, declarou Kolosovych, a diretora de 58 anos, que escreveu a peça em parceria com outros membros do grupo.
Anatoliy Shevchenko, de 68 anos, passou décadas trabalhando como ator da trupe de Mariupol. Durante o cerco, abrigou-se por semanas no porão de casa com a mãe idosa e a irmã – sem eletricidade, e com água e comida limitadas. Ficou sabendo da destruição do teatro pelo rádio pouco tempo antes que a mãe morresse de ataque cardíaco. Ele disse que deixou o corpo coberto por um lençol na calçada, ao lado de seis outros cadáveres. “Eu me sinto um monstro por não ter conseguido enterrar minha mãe”, lamentou o ator, entre lágrimas. Depois de ter perdido tanto, fazer parte dessa comunidade reafirma sua identidade, segundo ele, e a nova peça também oferece um recomeço, embora ele tenha dito que não pensou em voltar a Mariupol.
Durante a apresentação, Shevchenko passeou facilmente por vários personagens. Em uma das cenas, declamou um dos mais famosos poemas de Vasyl Stus, a retumbante voz grave preenchendo a sala de ensaio. “Que bom que não tenho medo da morte / E não questiono o peso de minha cruz.”
Nataliia Metliakova Marchenko, de 63 anos, membro da companhia há mais de 40, nasceu na Rússia, mas seus pais se mudaram para Mariupol quando era criança, e ela ainda tem o passaporte russo. Marchenko passou semanas sozinha em casa enquanto a cidade era bombardeada, até que amigos de seu filho a ajudaram a chegar ao oeste. “Quando os russos chegaram, vieram para me ‘libertar’”, ela disse, pronunciando a palavra em russo com a voz obviamente sarcástica. “E, de fato, eles me libertaram totalmente: do teatro, do meu apartamento, do meu lar, de tudo.” Ela contou que alguns atores da companhia permaneceram em Mariupol e participam de esforços das autoridades russas para reabrir o teatro original em setembro, com montagens em russo. O plano vem sendo amplamente criticado na Ucrânia; Petro Andryushchenko, assessor do prefeito, comparou-o a “dançar sobre túmulos”.
Dmytro Murantsev, ator de 22 anos que se abrigou no subsolo do teatro com a namorada e a mãe dela durante semanas antes do bombardeio, informou que o espaço ficou tão lotado que as pessoas precisavam dormir em turnos. O combate se tornou tão intenso nos arredores que não era possível sair, e as pessoas marcavam os dias na parede: “Achei que fôssemos morrer lá. Já estávamos enlouquecendo.”
No dia do ataque, ouviu-se o ruído de jatos sobrevoando o local, e todos sentiram o chão tremer sob os pés, contou o rapaz. A poeira se levantou do chão e as paredes tremeram. “As pessoas gritavam por ajuda, tentando sair, morrendo na nossa frente. As crianças tentavam desenterrar os pais.” Ele via a namorada gritar “Odeio ele” sem parar – referindo-se ao presidente da Rússia, Vladimir Putin –, mas não conseguia ouvi-la, porque o ruído da destruição abafava todo o resto. Ele disse que ela também sobreviveu, mas fugiu para a Alemanha com a mãe e o gato. Mesmo depois de várias semanas, Murantsev ainda se sente preso naquele momento: “Para ser sincero, ainda estou processando a experiência.”
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