Um dos princípios mais influentes da ciência é a Navalha de Ockham. Estabelecido pelo frade franciscano Guilherme de Ockham, o conceito defende que ideias complexas devem ser explicadas pela sua opção mais simples (“entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem”).
Algumas obras de arte conseguem seguir a Navalha de Ockham, transmitindo uma mensagem poderosa com muito pouco. Certas músicas precisam apenas de um refrão. É o caso da Vida do Viajante, em que Luiz Gonzaga declara a sua vontade de desbravar o Brasil para um dia descansar feliz, “guardando as recordações das terras onde passei”.
Explorar para depois recordar é um conceito importante também para a inteligência artificial (IA), em que algoritmos aprendem por meio de exemplos. E quanto mais exemplos para um mesmo problema, melhor é a sua recordação sobre a “chuva e sol, poeira e carvão”.
Para garantir que esses algoritmos funcionem em todas as regiões de um país como o Brasil, será necessário que aprendam com dados que representem a nossa diversidade. Isso será especialmente importante na área da saúde, que possui amplas diferenças em termos de disponibilidade de exames, protocolos clínicos, formação de profissionais e características genéticas e socioeconômicas dos pacientes.
Um estudo recente publicado pelo nosso laboratório da Faculdade de Saúde Pública da USP, analisou 18 hospitais das cinco regiões brasileiras e encontrou que algoritmos treinados com dados de pacientes de determinados locais perdiam muito da sua capacidade preditiva quando transferidos para realidades distintas. Ou seja, o aprendizado realizado com dados de uma região brasileira não era diretamente reaproveitável em outras.
A solução para esse desafio será primeiramente desenvolver algoritmos que aprendam o básico de um problema de saúde com dados de regiões com um maior e mais consistente histórico de coleta de dados. Após esse conhecimento geral sobre a doença, poderá ser feito um ajuste fino do algoritmo para outras regiões com características específicas, uma técnica que conhecemos como aprendizado de transferência.
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Isso é o equivalente a uma criança que aprende a andar no concreto e depois precisa caminhar em solos irregulares, como na grama e areia. O domínio prévio do equilíbrio no chão de concreto ajuda nas novas tarefas, mas é necessário um treinamento específico para garantir a destreza nas outras situações.
O maior impacto positivo da IA virá do auxílio aos médicos nas regiões remotas do País, que sofrem com a falta de especialistas e com o acúmulo de doenças crônicas e infecciosas da população local. Esses profissionais terão o suporte dos algoritmos de IA para melhorarem decisões sobre o diagnóstico e prognóstico dos seus pacientes, se aproximando ao máximo possível das decisões disponíveis para moradores dos grandes centros urbanos.
A disponibilidade de dados de qualidade nessas regiões será o grande desafio para o treinamento dos algoritmos, mas com os avanços na digitalização e interoperabilidade do sistema de saúde, trata-se de uma meta viável para os próximos anos.
Com isso, teremos algoritmos que conheçam a realidade do nosso país e gerem suas recordações. Dessa forma, como diria Luiz Gonzaga, poderão levar a “saudade no coração”.
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