O ano de 2023 foi sem dúvida um ano marcante para a história da inteligência artificial (IA). Praticamente todos puderam perceber o quão avançada a IA está, bem como suas possibilidades em apoiar trabalhos que antes exigiam muito treino e até uma boa dose de talento humano, como ilustrações e textos. Aquilo que parecia apenas ficção científica até pouco tempo atrás, tornou-se real e acessível a todos. Com a ajuda da ciência, a vida imitou a arte.
E justamente o tema "imitar a arte" tornou-se um tópico de intenso debate com os avanços da IA em geração de ilustrações, emulações de pinturas e até imagens com qualidade fotográfica. Como a minha perspectiva pessoal sobre o tema é influenciada pela minha formação e trajetória profissional (engenharia e negócios), resolvi buscar a opinião de um artista inovador.
Tive o prazer de conversar sobre o tema com Klaus Mitteldorf, um artista brasileiro de ascendência alemã e sueca que se tornou internacionalmente uma figura notável por seu trabalho transdisciplinar abrangendo uma variedade de meios e expressões artísticas, que vão desde a fotografia de moda até a direção de cinema, passando por colaborações com músicos e experimentações na fronteira da expressão artística, incluindo trabalhos mais conceituais e abstratos.
Entusiasmei-me em entender sua percepção sobre a IA ao perceber a essência inovadora de sua obra, que demonstra uma contínua busca pela expansão das fronteiras dos formatos que utiliza. Por exemplo, na fotografia, sua obra vai desde o uso inovador da luz e cor, até a utilização de abordagens que desafiam as fronteiras tradicionais entre diferentes gêneros de fotografia. Já no cinema, ele explora novas combinações entre a experiência visual com narrativas cinematográficas.
A conversa que tive com Klaus foi muito interessante e profunda, e me provocou muitas reflexões, que provavelmente poderiam preencher um livro. No entanto, aqui eu me limito a compartilhar, de forma sucinta, apenas as reflexões sobre a arte e o emergente papel da IA.
Klaus vê a arte como um refúgio essencial para a humanidade, onde o artista destaca-se por sua habilidade de captar e compartilhar com a sociedade suas emoções e visões mais íntimas, oriundas do desejo de superar traumas, medos, neuroses e outros dilemas internos e espirituais. Segundo o artista, "a arte é a forma mais sublime de terapia, pois, por meio dela, somos capazes de enfrentar e desvendar nossos conflitos mais profundos de maneira a preservar nossa saúde mental e a dos que nos cercam. Em essência, a arte funciona como uma catarse pública, permitindo que cada pessoa expresse seu íntimo de acordo com suas necessidades. Esse processo possibilita que os artistas inspirem e conduzam a sociedade a uma reflexão sobre como lidar com diferentes conflitos sociais."
Ou seja, se, de certa forma, a arte é uma forma criativa de manifestar emoções, não podemos considerar que a IA generativa realmente faça arte. Pois, mesmo que sua criação desperte emoções nas pessoas, seu funcionamento não é guiado por um mecanismo endógeno dos algoritmos que leve à necessidade de manifestar suas emoções, até porque os algoritmos não possuem emoção. Assim, a arte é um processo intrinsecamente humano, que se retirado da equação, faz com que a manifestação deixe de ser arte.
Por outro lado, um usuário utilizando uma IA generativa para criar uma imagem mantém o componente humano no processo criativo. A criação de prompts, ou seja, textos que instruem a IA generativa a gerar uma imagem de acordo com o desejo do usuário, poderia ser considerada uma forma de arte mediada pelo computador?
Para Klaus, cada criador tem seu estilo único e faz uso das ferramentas disponíveis, adaptando-se à evolução do mercado e das tecnologias. Em sua visão, a IA é apenas mais uma dessas ferramentas dentro de uma vasta gama de possibilidades atualmente disponíveis. Ele entende que ela pode ser um alicerce para o avanço de novas tecnologias na fotografia, no cinema e em outras formas de arte.
No entanto, ele é categórico ao dizer que a IA não deve ser empregada na essência do processo criativo de um verdadeiro artista. Ele argumenta que o real artista sempre estará um passo à frente desafiando conceitos pré-existentes e criando novas formas de manifestar e provocar emoções, enquanto as IAs generativas são programadas para imitar a criação humana. Ou seja, em sua visão, as IAs geram conteúdos que satisfazem critérios, padrões e dados já aceitos e incorporados ao repertório humano, enquanto o verdadeiro artista está sempre em busca de desafiar esses conceitos para evoluir a expressão artística. Assim, o artista, em sua constante evolução e singularidade, não pode ser replicado pela IA, que, por sua natureza, sempre estará um passo atrás e jamais alcançará a essência da "alma viva" do artista.
Mesmo com todo o hype em torno do tema, conhecendo como as IAs generativas funcionam é difícil não concordar com Klaus Mitteldorf. No entanto, será que isso não poderá mudar algum dia?
Ao longo das próximas décadas, veremos novos progressos tecnológicos que visam a nos integrar mais às máquinas e, com isso, provavelmente a linha que separa a IA da inteligência humana poderá se tornar cada vez mais difícil de ser traçada. Interfaces cérebro-máquina de empresas, como a Neuralink de Elon Musk, já permitem atualmente usar IA para decodificar intencionalidade de movimentos a partir de sinais capturados diretamente no cérebro e, no futuro, talvez possam decodificar nossas emoções e sentimentos. Com isso, poderão gerar manifestações visuais ou sonoras que sejam consideradas arte pela sua essência. Indo mais além, é possível que algum dia venhamos a ter tecnologia para decodificar perturbações em nosso inconsciente e traduzi-las em manifestações com essência ainda mais profunda. Serão artísticas essas manifestações?
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