Dois anos após o lançamento do ChatGPT, uma geração de estudantes chega à edição deste ano do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que começa neste domingo, 3, preparada com auxílio do chatbot esperto da OpenAI - e de outras ferramentas turbinadas por inteligência artificial (IA).
Entre as várias funções executadas pela ferramenta estão resumo de conteúdo, interpretação de texto, técnicas de redação e atalhos de memorização, trazendo uma nova dinâmica de aprendizado. Mas especialistas alertam que há armadilhas no caminho.
Felipe Veríssimo Crippa, de 17 anos, conta que a IA trouxe praticidade para compilar conteúdos. Aluno de uma escola pública em Mogi das Cruzes (SP), ele conta que usa a IA para revisar conceitos-chave. “Eu pedi para a IA fazer flashcards. Ela faz a parte concisa, resumida da matéria, para você ficar revisando”, diz.
Neste ano, ele fará o Enem apenas como treineiro, mas detectou uma das principais qualidades de chatbots de IA: trabalhar com textos já existentes de outras fontes, como sites e apostilas.
Já Ana Clara de Azevedo, de 19 anos, estudante de Duque de Caxias (RJ), utilizou a IA para melhorar o seu próprio texto, principalmente no estudo de como estruturar a redação. Ela, no entanto, adotou o Suno, ferramenta de IA que transforma em música qualquer tipo de texto.
“Eu usava o Suno para transformar minha redação em música, o que me ajudava a memorizar a estrutura,” conta ela, que tenta uma vaga em ciências econômicas. Para Ana, o uso da IA não apenas organizou sua preparação, mas trouxe mais segurança: “Eu sabia exatamente o que estava corrigindo. A IA me permitia fazer mais redações e acabou reduzindo a minha ansiedade.”
Pode parecer um assunto altamente futurista, mas quem já chegou lá garante que as novas ferramentas funcionam. Eric Matheus, de 20 anos, usou o ChatGPT e o aplicativo Photomath em 2023 para revisar conteúdos de Matemática e Ciências, o que contribuiu para sua aprovação em medicina na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Eu esperava que a IA tornasse o estudo mais produtivo, em vez de eu quebrar a cabeça para entender algum texto,” afirma.
As armadilhas da IA
Especialistas consideram as novas ferramentas como aliadas, mas fazem alertas. A professora Anna Carolina Queiroz, da Universidade de Miami, explica que o uso da IA pode influenciar negativamente na retenção de habilidades cognitivas.
“Com essas ferramentas, todos esses processos de busca e interpretação de conteúdo são realizados em segundos e uma resposta ou solução pronta é fornecida ao aluno, sem que ele precise exercitar nenhum desses domínios de aprendizagem,” diz.
Alexandre Nascimento, cofundador e consultor da Beyond The Hype (BTH), acredita que a IA pode ajudar na preparação, mas alerta para o risco de dependência. “O aluno não pode terceirizar os processos cognitivos. Tem de entender que, se você não pensa sobre um tema, você não internaliza aquele conceito.” Nascimento vê na IA um apoio valioso, mas defende que o estudante “precisa continuar raciocinando”.
Um dos principais pontos de atenção levantados pelos especialistas é a necessidade de uso orientado por professores. “O uso indiscriminado de IA generativa, sem suporte aos professores ou alunos, pode ser desastroso. Já o seu uso integrado, contextualizado e orientado pode auxiliar o desenvolvimento das habilidades cognitivas superiores, ao permitir que os alunos se tornem críticos em relação ao conteúdo a que estão expostos”, diz Eduardo Zanini, diretor de produto da Geekie.
Os próprios alunos já se deram conta de que é preciso estar atentos. Embora tenha obtido bons resultados, Eric, da UFMG faz uma ressalva: “Eu vejo muito a IA como um professor, mas é como se ela fosse um professor que fez uma graduação um pouco duvidosa.” Para ele, a tecnologia é uma aliada, mas o estudante precisa saber onde buscar informações adicionais e confirmar a veracidade do conteúdo.
Felipe também encontrou falhas. “Perguntei para o chat sobre estrutura das bactérias e ele me passou algo que estava bem ultrapassado”, diz. Ele afirma que, para utilizar a IA, o estudante deve ter uma base no conteúdo e saber avaliar as informações fornecidas.
Mais IA para todos
Apesar do uso de IA na preparação para o Enem já ser uma realidade, Guilherme Cintra, diretor de inovação e tecnologia da Fundação Lemann, destaca que o acesso desigual às tecnologias continua sendo um desafio importante no Brasil. “Historicamente, a tecnologia no contexto educacional tem sido uma ferramenta de reforço à desigualdade,” explica ele, ao apontar que alunos de escolas públicas frequentemente não têm o mesmo acesso a dispositivos ou à fluência no uso das ferramentas que seus pares em escolas privadas.
Cintra reforça que IA também pode ser usada para que os educadores identifiquem rapidamente as áreas em que os alunos mais precisam de apoio, facilitando a personalização das aulas. “Os professores podem dar uma aula melhor a partir dos dados gerados por essas ferramentas. Então, isso permite que o professor visualize como os alunos estão evoluindo ou não.”
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