No meio musical, uma piada comum é a de que bateristas são pessoas distraídas, que vivem em mundo à parte, distantes de outros instrumentistas. Pois foi do alto de sua bateria que Geraldo Ramos, 38, viu a música sob outro prisma: uma expressão da humanidade que pode ser turbinada por algoritmos de inteligência artificial (IA).
O pernambucano de nascimento e paraibano de criação está nos EUA desde 2012 trabalhando com tecnologia, mas foi em 2019 que tudo mudou. Naquele ano, pesquisadores da plataforma de streaming Deezer publicaram o Spleeter, um algoritmo de código aberto que fazia “desmixagem” (ou “unmixing”), processo de separar os instrumentos de um arquivo de música já pronto. É um trabalho oposto ao de uma mixagem de música, que tenta acomodar todos os instrumentos em uma única pista.
Ao conhecer o Spleeter, Ramos fundou em Utah (EUA) a Moises AI, startup que desenvolve algoritmos de desmixagem. No início, a companhia tinha um aplicativo que eliminava o vocal de canções, o que permitia brincar de karaokê, porém, os algoritmos evoluíram para isolar qualquer instrumento de uma canção.
Virou uma ferramenta não apenas de diversão, mas também de estudo. Permitiu que músicos ouvissem e entendessem com mais precisão antes de executar partes. A companhia fez parceria com instituições de ensino, como a Berklee, uma das mais renomadas faculdades de música no mundo. E chegou também a músicos profissionais. Charles Gavin, baterista dos Titãs, afirmou ter usado o aplicativo para ensaiar as músicas da atual turnê de reunião da banda.
Em abril deste ano, a companhia já tinha 30 milhões de usuários cadastrados e Ramos viu um novo caminho para os seus algoritmos - desde o Spleeter, a Moises AI passou a desenvolver a própria IA . “Estamos cada vez mais envolvidos com produção musical, oferecendo soluções para a indústria”, afirma ele ao Estadão.
Os algoritmos de desmixagem, por exemplo, também são excelentes ferramentas para preservar e recuperar áudios antigos. Os áudios do filme Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você, de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, foram recuperados e retrabalhados pela IA da Moises AI.
Com um pé em Utah e outro em um centro de desenvolvimento em João Pessoa (PB), a Moises AI recebeu seu último aporte, de US$ 8,65 milhões, em agosto do ano passado. E agora se prepara para o próximo estágio da tecnologia na música: clonagem de voz por IA.
A startup criou uma plataforma na qual cantores podem licenciar suas vozes, que posteriormente podem ser usadas por produtores na criação de canções e peças publicitárias - essas vozes podem cantar qualquer música e narrar qualquer texto, pois elas são clonadas e manipuladas por IA. O caminho do licenciamento tenta acalmar artistas, preocupados com a exploração indevida de suas qualidades na nova era dos algoritmos.
“Cada artista que licencia sua voz com a gente recebe toda a receita de quando ela é usada na plataforma. Estamos propondo um modelo focado no artista”, afirma ele. É uma visão ampla do processo de produção musical - algo que a piada sobre bateristas jamais pensou que pudesse acontecer.
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