Na sexta, 12, um velho conhecido da internet brasileira ressurgiu. Com um novo vídeo viral, descobrimos que Nissim Ourfali, o garoto que em 2012 protagonizou um dos mais clássicos e traumáticos episódios de nossas redes sociais se casou - a noiva reinterpretou, com nova letra, a música que lançou a família numa batalha judicial contra o Google. Agora, dá um certo alívio ver que, aparentemente, o caso teve um desfecho mais leve do que aquilo que aconteceu há 12 anos.
Para quem não se lembra, o caso Nissim Ourfali simboliza o que há de melhor e de pior na internet brasileira. Em 2012, Ourfali fez um vídeo no qual parodiava a canção “What Makes You Beautiful”, do grupo pop adolescente One Direction. A produção era parte das comemorações do seu Bar-Mitzvah, a celebração judaica que marca o 13º aniversário dos meninos que seguem a religião.
Na letra, surgiam algumas das coisas que o garoto mais gostava de fazer, como frequentar a praia da Baleia, no litoral norte de São Paulo, e jogar videogame. A produção era divertida e o pai decidiu torná-la pública no YouTube para que mais parentes e amigos pudessem assistir. Ele mal podia imaginar o que estava por vir - e, dado que em 2012 muita gente mantinha uma relação quase inocente com as redes sociais, quase ninguém podia prever.
O vídeo se espalhou pela internet e, de repente, e o ganhou uma notoriedade insuportável - em apenas uma semana, o vídeo foi visualizado 1 milhão de vezes. E, claro, tudo o que há de pior na internet atingiu a família: bullying, intolerância religiosa e até ameaça de morte, como relatou com detalhes o jornalista Chico Felitti no podcast Além do meme.
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A família entrou em uma batalha jurídica contra o Google, dono do YouTube, para tentar derrubar o vídeo. Era uma época em que o Marco Civil da Internet não existia e havia o precedente do processo que a modelo Daniela Cicarelli moveu contra a gigante da internet após um vídeo íntimo dela ser postado na plataforma de vídeos - em 2007, a Justiça chegou a bloquear o YouTube (em 2015, ela foi indenizada em R$ 250 mil). Portanto, ainda era muito nebuloso definir a responsabilização das plataformas e a derrubada de conteúdos, mas, no geral, as empresas eram punidas.
Logo na sequência, em outubro de 2012, a família teve uma decisão favorável para que o Google derrubasse os vídeos sob pena de R$ 20 mil diários. Mas, dois anos depois, a gigante obteve uma vitória na 1ª Vara de Cível de São Paulo e ficou desobrigada de apagar o material - além de livrar-se da indenização de R$ 30 mil. Para Ourfali, o pior já havia acontecido: o vídeo havia se replicado em diferentes plataformas - a música até tocava em baladas.
Ainda assim, a família recorreu e obteve uma vitória em segunda instância, que obrigou o Google a derrubar todos os vídeos que envolviam a paródia de sua plataforma. Na época, o Google afirmou que iria recorrer por entender que “a decisão do TJ-SP não observou a jurisprudência pacífica do STJ sobre a matéria, que reconhece a necessidade de indicação das URLs específicas do conteúdo para que seja possível fazer a remoção. O Tribunal também não aplicou o Marco Civil da Internet, que é o marco legal da matéria e também determina a indicação precisa da URL para permitir a remoção”. O processo entrou em segredo de Justiça e até hoje não sabemos o resultado do caso nos tribunais - entrei em contato com o Google, mas não tive retorno até a publicação deste texto.
Basicamente, o Google afirmava que só podia derrubar o que era indicado por URL, sem fazer uma busca ativa por novas postagens. Na época, sistemas de inteligência artificial (IA) para moderação de conteúdo ainda estavam engatinhando, mas chega a ser estranho ler um argumento desses em 2024. A companhia já tem tecnologia para derrubar materiais sem a exigência de URL. Faça um teste e tente postar qualquer conteúdo protegido por direito autoral no YouTube para você ver sistemas automáticos de IA entrarem em ação.
Já a questão de moderação e responsabilidade de conteúdo segue como um dos principais temas de debate da internet brasileira - chegou até 2024 no âmbito das discussões do PL das Fake News, ainda que o ponto central seja outro.
Outra tese jurídica que supostamente poderia proteger o garoto durante todo esse tempo, a do “direito ao esquecimento”, foi rejeitada em 2021 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”, concluiu o tribunal.
O mais triste dessa história é que o meme da praia da Baleia poderia ter sido apenas uma passagem divertida em vez de ter virado uma batalha de tribunais - aqui no Estadão, elegemos o meme como um dos mais importantes da década de 2010. Mas o desespero dos pais só aconteceu porque o caso foi um dos primeiros sinais de que as redes sociais estavam se tornando um ambiente hostil - ainda não tinha nome, mas a era do cancelamento estava no horizonte. E a nossa internet preferiu começar atacando uma criança.
Após o meme da Baleia, Nissim Ourfali deixou poucos rastros no ambiente digital - o mais claro deles é um perfil no LinkedIn. O vídeo do casamento, em que Noemi Ourfali se apresenta como esposa de Nissim ao parodiar novamente “What Makes You Beautiful”, não foi postado por ninguém da família - portanto, espero que não seja a reedição do que aconteceu em 2012. Mas parece que o noivo e a família superaram o episódio. Ou, ao menos, há uma tentativa de recomeço.
Os muitos temas que esse caso levantou permanecem atuais e urgentes, mas com tantas notícias pesadas vindas de nossas redes sociais, a ideia de que o garoto encontrou uma nova forma de lidar com tudo o que ocorreu dá uma sensação boa - quase tão gostosa quanto visitar a praia da Baleia.
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