Como uma pequena ilha do Pacífico está lucrando com seu domínio de internet

Dona do domínio “.tv”, símbolo mundial do entretenimento, Tuvalu, de 11 mil habitantes, vende seus direitos para marcas globais

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Por Alexander Lee
Apesar de ser um endereço popular na internet, Tuvalu tem apenas conexão via satélite Foto: Andrea Ucini/WP

Em 1995, Stephen Boland estava sentado no escritório, trabalhando como planejador macroeconômico para o microestado de Tuvalu, no Pacífico, quando a máquina de fax deu um sinal de vida. Seu papel imprimiu uma mensagem que, tempos depois, equivaleria a um bilhete de loteria premiado.

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A mensagem era um despacho informando que Tuvalu ganhara um domínio com código de país para seus endereços na internet – a sequência de caracteres no final de uma URL, como “.com” ou “.org”. O domínio de Tuvalu era “.tv”, símbolo mundial para transmissão de entretenimento. Naquela época, o significado da mensagem não estava claro para Boland, nem para os demais membros do escritório. Eles tinham problemas mais urgentes. 

“Ficamos olhando para o fax”, disse Boland. “As pessoas liam aquilo de ‘ponto tv’ e se perguntavam: que diabos é essa coisa de internet?”.

Quase 25 anos depois, o poder da internet permanece relativamente desconhecido para muitas pessoas na ilha, mas sua evolução tornou o domínio “.tv” um dos recursos mais valiosos de Tuvalu. Graças ao aumento da programação transmitida ao vivo e dos videogames online, Tuvalu recebe cerca de 1/12 da sua renda nacional bruta anual licenciando seu domínio a gigantes tecnológicos, como a plataforma de streaming da Amazon, o Twitch, por intermédio da empresa Verisign, que tem sede na Virgínia. Em 2021, quando o contrato de Tuvalu com a Verisign expirar, esse percentual aumentará significativamente.

Donos de domínio valioso

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A meio caminho entre o Havaí e a Austrália, Tuvalu é uma cadeia de atóis de coral e ilhas de recife, com uma população de cerca de 11 mil habitantes. Antes de conquistar a independência do Reino Unido, em 1978, Tuvalu fazia parte do protetorado britânico das Ilhas Gilbert e Ellice. Funafuti, a capital de Tuvalu, é uma ilha em formato de lua crescente com 18 quilômetros de coral circundando uma lagoa de 160 quilômetros quadrados. Tem um aeroporto, um banco, um hospital e uma estrada que atravessa a extensão do atol. Não importa onde você esteja, de todos os pontos é possível ver toda a ilha, com facilidade.

A indústria pesqueira de Tuvalu e a agricultura limitada não produzem alimentos suficientes para sustentar a população do microestado, que subsiste principalmente de bens importados. Apesar desse desequilíbrio na produção de alimentos, a qualidade de vida em Tuvalu é relativamente alta. A educação pública obrigatória elevou a taxa de alfabetização de adultos para quase 99%, e o Banco Mundial classifica Tuvalu como uma economia de renda média alta, com seus direitos territoriais de pesca representando o maior pedaço de sua renda nacional, estimados em US$ 19 milhões em taxas de licença em 2018. Mas outra parte considerável decorre diretamente do licenciamento do seu sufixo de URL, graças à recente ascensão dos sites de streaming. À medida que os sites que utilizam “.tv” ganham destaque, o domínio de Tuvalu na web pode vir a substituir o de seus mares.

Poucos tuvaluanos conseguem acessar os serviços de streaming “.tv”. A internet do país, embora amplamente acessível, é limitada a uma conexão via satélite com capacidade de transmissão reduzida. No entanto, com mais de 140 milhões de pessoas em todo o mundo consumindo conteúdo via Twitch.tv e outras plataformas de streaming, os benefícios monetários ajudaram Tuvalu de maneiras mais tangíveis que o entretenimento. 

“[O domínio .tv] proporciona uma renda certa e segura”, disse Seve Paeniu, ministro das Finanças de Tuvalu. “Ele permite que o governo forneça serviços essenciais a seu povo, oferecendo educação para as crianças, prestando serviços médicos ao nosso povo e também melhorias na infraestrutura econômica básica e na prestação de serviços às nossas comunidades”.

Para monetizar o “.tv”, o governo de Tuvalu negociou uma série de acordos que permitem que empresas estrangeiras comercializem o domínio para uso comercial. Sob o acordo atual, assinado em 2011, a empresa de infraestrutura de rede Verisign, com sede na Virgínia, paga a Tuvalu cerca de US $ 5 milhões por ano pelo direito de administrar o domínio “.tv”. Para uma nação cujas receitas domésticas anuais giram em torno dos US $ 60 milhões, é um benefício substancial.

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O domínio “.tv” também tem sido um produto útil para a Verisign. A empresa é essencialmente um atacadista de nomes de domínio. Ela cria extensões de nome de domínio, define as regras para esses nomes e credencia revendedores – registradores como GoDaddy ou Dynadot – para vender registros de nomes de domínio diretamente aos consumidores. É difícil calcular exatamente quanto a Verisign lucra com seu controle do “.tv” a cada ano, mas uma olhada em alguns dos números envolvidos dá uma ideia do quadro geral.

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A Verisign não revela o número exato de URLs “.tv” registrados. O DomainTools lista 500.700 sites .tv, enquanto o Domain Name Stat fala em 470.102. Esses dois números são, na melhor das hipóteses, estimativas baseadas em uma contagem de sites visíveis, e não no total de domínios registrados.

A Verisign cobra dos registradores uma taxa anual de US $ 7,85 por domínio .com em seu registro. Domínios “premium”, como o “.tv”, são mais caros: a taxa exata do “.tv” não está disponível ao público, mas os registradores relataram um aumento de 12% do preço em 2017. Um exemplo, visto em um documento obtido pelo Post, mostrava um site pagando pouco mais de US $ 100 por ano pelo registro e manutenção contínuos de seu endereço “.tv”. Especialistas estimaram que o custo operacional do registro da Verisign é de US $ 1 por domínio por ano.

Não há dúvidas quanto a um número: em 2018, a operação de registro de domínio da Verisign gerou um total de US $ 1,21 bilhão em receita, de acordo com o relatório de seus investidores.

“Estamos orgulhosos de nosso relacionamento de longa data com o governo de Tuvalu e do trabalho que fizemos para ajudar a tornar os domínios “.tv” alguns dos principais destinos de entretenimento do mundo”, disse um representante da Verisign. A empresa também administra outros domínios comuns, como .com, “.net”, “.gov” e “.edu”.

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Mas o relacionamento entre Tuvalu e a Verisign nem sempre foi harmonioso, o que pode abrir o terreno para Tuvalu angariar ainda mais dinheiro para o acordo de licenciamento de domínio.

Em busca de um novo acordo

O ex-ministro das Finanças Lotoala Metia disse que, antes da renegociação do contrato entre as duas partes, em 2011, os pagamentos anuais da Verisign pelo domínio “.tv” –então US $ 2 milhões por ano – eram “mixaria”.

A retórica de Paeniu é mais diplomática, mas ele compartilha a opinião de seu antecessor. “No fim das contas, é preciso ceder e, na época, acabamos com esse acordo”, disse Paeniu sobre as negociações de 2011. “Atualmente, na minha opinião, ele não seria aceitável, poderíamos conseguir um acordo melhor”.

Boland concorda com essa avaliação. “Trata-se de um recurso realmente subutilizado, pelo qual Tuvalu poderia estar ganhando muito mais dinheiro, se tivesse alguém do seu lado para lutar de verdade pelo país, algum tipo de especialista em streaming que conhecesse os meandros e soubesse o que seria um bom acordo”, disse Boland.

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À medida que a renegociação se aproxima, Paeniu e seus colegas observam atentamente o valor de mercado do domínio “.tv” e veem os números em torno do streaming de entretenimento disparando. De acordo com o Twitch Tracker, a média de visualizações simultâneas do Twitch aumentou 1.580% (de 77.798 para 1.229.122) entre setembro de 2012 e dezembro de 2019. Em 2012, havia 3.386 canais parceiros no Twitch; agora existem mais de 27 mil. Em termos de números mais amplos de serviços de streaming, a Cisco previu em 2017 que a transmissão de vídeo online representaria 82% de todo o tráfego da web até 2021, quando está programada para ocorrer a renegociação do “.tv”.

Se Tuvalu não receber uma oferta que considere justa, o país poderá optar por licenciar o domínio “.tv” para um dos concorrentes da Verisign, como a Neustar ou a Afilias.

“O contrato atual impediu que Tuvalu capitalizasse com o advento desses serviços de streaming online e prejudicou a receita potencial que esses serviços poderiam oferecer pelo domínio ‘.tv’”, disse Paeniu. “A intenção do governo de Tuvalu no futuro é de fato renegociar o contrato quando ele expirar, dentro de um ano”.

Embora tenha esperança de uma renegociação bem-sucedida com a Verisign, Paeniu disse que Tuvalu pode avaliar ofertas de outras empresas em 2021. “Nosso objetivo é garantir que maximizemos nossos benefícios”.

Mais um afluxo pela frente?

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Embora os números específicos do uso do domínio “.tv” não sejam claros, o uso geral dos domínios com código de país está aumentando. De acordo com um relatório do setor de nomes de domínio da Verisign de agosto de 2019, o total de registros desse tipo de domínio vem aumentando 6% ano a ano. A designação “.tv” não é um dos dez maiores domínios com código de país, mas ganhou destaque nos últimos anos.

Quem lidera a estatística é o Twitch.tv. Na batalha pela supremacia do streaming, o Twitch depositou suas esperanças no mundo em rápido crescimento do conteúdo de games e e-sports. Essa estratégia valeu a pena até agora: com 9,36 bilhões de horas visualizadas em 2018, o Twitch começou a se aproximar das visualizações de redes de notícias a cabo, como Fox News e MSNBC.

O Twitch é de longe o site “.tv” mais conhecido e o único classificado entre o top 50 da Alexa. Mas muitos de seus concorrentes também registraram URLs “.tv”. O DisneyPlus.tv redireciona os usuários para o site principal da Disney; o mesmo vale para Netflix.tv, Hulu.tv, YouTube.tv e Amazon.tv. Enquanto o Twitch permanecer no centro das atenções, o domínio “.tv” vai continuar em alta. E agora o governo de Tuvalu está mais atento.

“Acho que a batalha [pelo aumento das taxas de licenciamento] deveria ter começado em 2011”, disse Boland. “Mesmo naquele momento, estava bem claro o que vinha acontecendo com o desenvolvimento dos domínios, o streaming e todo esse tipo de coisa (...). Toda a experiência, a informação e o conhecimento pareciam estar nas mãos da Verisign. Tuvalu realmente tinha um conhecimento muito limitado, um entendimento muito limitado do mercado. É um tipo de negociação muito assimétrica”.

Independentemente de seu sucesso nas negociações futuras, os cidadãos de Tuvalu em breve poderão iniciar seus próprios canais do Twitch e participar da febre do streaming à qual seu país está financeiramente vinculado. Graças a uma doação do Banco Mundial, estão em andamento planos para instalar um cabo de fibra óptica submarino em Tuvalu, o que aumentará a banda do país e a conectividade com a internet.

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“Então”, disse Paeniu, “talvez nossa comunidade e nosso povo possam se beneficiar diretamente dos serviços de streaming online que o domínio .tv oferece”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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