Desenvolvedores e programadores são altamente cobiçados por empresas de todo o mundo devido à necessidade de transformação digital dos negócios, que demandam pessoas especializadas para transformar linhas de código de software em produtos e serviços digitais. A massificação da inteligência artificial (IA), no entanto, pode chacoalhar essa dinâmica de décadas, balançando um setor conhecido por alta empregabilidade e mão de obra qualificada difícil de encontrar.
Profissionais da área de tecnologia, afetada há mais de dois anos por uma onda de demissões em massa e pela escassez de capital por conta da alta global dos juros, questionam a própria necessidade da sua atividade num momento em que ferramentas como ChatGPT, Bard e Microsoft Copilot são capazes de escrever linhas de código. Assim, a grande questão do momento entre trabalhadores do setor é se a IA vai roubar seus empregos — ou até diminuir seus salários.
Segundo estudo de julho de 2023 elaborado pelo instituto americano Pew Researcher Center, as profissões com maior exposição à IA são aquelas com feitas por trabalhadores de escritório, o que inclui analistas, escritores e desenvolvedores, enquanto barbeiros e bombeiros, por exemplo, têm menor exposição. Para o estudo, ter maior ou menor exposição à IA não significa que o emprego deve ser eliminado, e sim que deverá sofrer mudanças nos próximos anos.
Além disso, pesquisa do Fundo Monetário Internacional aponta que quase 50% dos empregos do mundo devem sofrer algum impacto da inteligência artificial. As consequências devem ser maiores nos países mais ricos, onde a automação e trabalhos melhor qualificados podem ser beneficiados ou prejudicados pela IA.
“Hoje, na área de programação, a inteligência artificial é como um assistente, e bem útil”, explica Carla de Bona, cofundadora e diretora de inovação da Reprograma, organização que se dedica a ensinar programação para mulheres negras, trans e travestis. “Para problemas complexos, o programador ainda é necessário para estruturar e pensar como vai ser, enquanto as ferramentas completam pequenas linhas de código.”
Na área de programação, a inteligência artificial é como um assistente, e bem útil
Carla de Bona, cofundadora da Reprograma
Carla compara o trabalho de uma inteligência artificial a algo que já existe há anos nos computadores: os corretores de texto. Hoje, editores como Google Docs e Microsoft Word possuem dicionários embutidos, bem como sugestão automática de texto. O usuário ainda precisa estruturar, escrever e editar o material, mas algumas etapas (como a revisão) ficam mais velozes.
Para os programadores, a chegada do ChatGPT e seus rivais é similar. “A IA vai automatizar algumas tarefas, realizar revisões. Mas ainda é preciso perguntar e dar comandos para que se cumpram essas tarefas”, completa Carla de Bona.
Na prática, “debugar” se torna um dos grandes avanços causados pelo trabalho de assistente da inteligência artificial. O termo é um jargão da área de programação para a atividade de encontrar e corrigir erros em um conjunto de linhas de código. E isso pode ser bem cansativo e trabalhoso, tomando dias ou semanas do desenvolvedor.
Com o ChatGPT ou outra IA, o desenvolvedor coloca o trecho do código no comando e a própria ferramenta encontra o erro. E, a depender do contexto, é possível pedir soluções para a máquina, que sugere caminhos para resolver o problema.
Para Isabela Castilho, fundadora e presidente executiva da escola Rocketseat, isso muda o ritmo de trabalho da área de programação. “Um trabalho que poderia durar 10 horas chega a ser reduzido em 20%, por exemplo”, diz ela. “O ChatGPT revolucionou o mercado de uma forma muito rápida e aumentou a produtividade de uma forma que nunca pensamos ser possível tão rapidamente.”
A IA pode vai substituir desenvolvedores e programadores?
Muito se especula sobre o risco de a inteligência artificial avançar a ponto de conseguir substituir times inteiros de desenvolvedores. Para os especialistas consultados pelo Estadão, porém, isso ainda está longe de acontecer — ao menos no curto prazo.
“Não é possível substituir facilmente uma pessoa que faz programação, porque o trabalho dessa pessoa hoje não é só escrever linhas de código”, explica Paulo Silveira, fundador e presidente executivo da escola de programação Alura. “Se assim fosse, seria mais fácil remunerar o desenvolvedor a partir de quantas linhas de código essa pessoa escreve.”
Silveira explica que, hoje, o trabalho de um desenvolvedor envolve outras tarefas mais banais, como entender a melhor linguagem, ter reuniões com clientes, entender o modelo de negócio da empresa e checar a compatibilidade com legislação local, por exemplo. “E o que a IA faz é apenas ajudar na escrita do código”, explica o CEO.
Carla de Bona, diretora da Reprograma, levanta outro ponto. Ela concorda que a IA não vai substituir programadores, mas acrescenta que a tecnologia pode reduzir equipes e alterar a dinâmica de “pares”, em que os times de desenvolvedores se dividem em duplas para realizar tarefas. Em vez da troca entre dois humanos, pode ser possível que seja um programador e uma máquina trabalhando lado a lado numa atividade.
As mudanças causadas pela IA são inevitáveis. Não é só hyp
Isabela Castilho, CEO da Rocketseat
“O ChatGPT pode deixar a profissão de programador mais solitária, porque a IA acaba cumprindo com essa dinâmica de par no dia a dia do trabalho”, afirma Carla. “Eu mesma uso a ferramenta dessa forma. Eu peço para ajustar o tom de um e-mail, algo que eu compartilharia com outra pessoa.”
Por isso, a recomendação geral é abraçar a inteligência artificial no trabalho, e não evitá-la. Saber complementar ferramentas desse tipo à rotina vai ser essencial para o futuro dos profissionais de tecnologia, da mesma forma que contadores abraçaram planilhas digitais como o Excel.
“Não adianta ter medo. É preciso partir para cima da ferramenta e estudar muito. E oportunidade de trabalho não vai faltar”, diz Isabela Castilho, da Rocketseat. “As mudanças causadas pela IA são inevitáveis. Não é só hype.”
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