Numa noite de segunda-feira em novembro, a organização americana sem fins lucrativos YWCA Metropolitan Chicago, focada em empoderamento feminino e combate ao racismo, recebeu o telefonema de um representante da bilionária filantropa MacKenzie Scott, ex-esposa de Jeff Bezos. A notícia era boa demais para ser verdade: seu grupo receberia uma doação de US$ 9 milhões. Entre a pandemia e a recessão, foi um ano difícil para a YWCA de Chicago e o dinheiro estava apertado - Dorri McWhorter, chefe executiva da organização, chegou a derramar lágrimas de alegria ao telefone.
Cenas semelhantes aconteceram em instituições de caridade ao redor dos Estados Unidos em 2020. A equipe de MacKenzie recentemente enviou centenas de e-mails inesperados para diversas instituições, notificando-as sobre a chegada de uma doação. Algumas das mensagens foram vistas como possíveis golpes ou acabaram em filtros de spam. Muitas das doações foram as maiores que as instituições de caridade já haviam recebido. McWhorter não foi a única destinatária que chorou.
Ao todo, MacKenzie Scott - cuja fortuna vem de ações da Amazon que ela obteve em 2019, após seu divórcio com Jeff Bezos, fundador da empresa - doou mais de US$ 4 bilhões para 384 grupos, entre eles 59 outras seções da YWCA.
“Organizações lideradas por mulheres negras costumam estar no fim da fila dos filantropos”, disse McWhorter. “Ela reconhece que as organizações estão fazendo um bom trabalho e que vamos cuidar bem desses dólares”.
No decorrer de uns poucos meses, MacKenzie virou a filantropia tradicional de ponta-cabeça. Se fundações multibilionárias como a Bloomberg Philanthropies e a Bill and Melinda Gates Foundation têm sedes chiques, a operação de MacKenzie não tem endereço conhecido - nem mesmo site. Ela fala de uma “equipe de consultores” e não de um grande time dedicado.
Ao desembolsar seu dinheiro rapidamente e sem muito alarde, a ex-esposa de Bezos tem focado em um tipo específico de organizações: faculdades e universidades historicamente negras, faculdades comunitárias e grupos que distribuem alimentos e pagam dívidas médicas - que muitas vezes não passam no radar das principais fundações.
“Se você olhar para as motivações da maneira como as mulheres se envolvem na filantropia em comparação com as formas como os homens se envolvem na filantropia, vai ver que tem muito mais ego no homem, é uma coisa muito mais transacional, é muito mais determinado pelo status”, disse Debra Mesch, professora no Instituto de Filantropia Feminina da Universidade de Indiana. “As mulheres não gostam de espalhar seus nomes nas fachadas dos prédios, de maneira geral”.
Assim como fez em julho, quando anunciou doações de US$ 1,7 bilhão para 116 organizações, MacKenzie revelou sua última rodada de filantropia por meio de uma postagem no site Medium. Ela contou que havia feito “doações inesperadas e não solicitadas, entregues com total confiança e sem contrapartidas”. Essas contrapartidas são uma constante na filantropia moderna: propostas de doações onerosas e visitas estressantes, seguidas por relatórios sobre uma variedade de padrões de desempenho que as instituições de caridade devem cumprir para manter o fluxo de dinheiro.
“As organizações sem fins lucrativos não são apenas cronicamente subfinanciadas, também são cronicamente desviadas de seu trabalho por causa da arrecadação de fundos e das onerosas exigências de relatórios que os doadores costumam demandar”, escreveu ela.
Grupos de caridade aplaudiram a natureza incondicional das doações de MacKenzie.
“Essa mentalidade de confiança é o que precisamos na filantropia”, disse Katie Carter, executiva-chefe da Pride Foundation em Seattle, uma instituição de caridade LGBTQ+ que recebeu uma doação de US$ 3 milhões.
Especialistas em filantropia disseram que os quase US$ 6 bilhões em doações de MacKenzie podem estar entre as quantias mais altas já entregues diretamente a instituições de caridade num mesmo ano por um único doador vivo (algo diferente de um bilionário fazendo uma enorme doação única para uma fundação, a ser desembolsada ao longo de décadas). E ao invés de umas poucas doações direcionadas, ela doou a centenas de grupos.
“Ela movimentou somas extraordinárias, de um jeito muito rápido e nada paternalista”, disse Rob Reich, codiretor do Centro de Filantropia e Sociedade Civil de Stanford.
As fundações são obrigadas por lei a desembolsar pelo menos 5% de seu patrimônio ao ano. Muitas mal atendem a esse requisito e acumulam dinheiro, doando menos do que os lucros que ganham com os investimentos. Isso permite que seu patrimônio continue crescendo e que as fundações sobrevivam perpetuamente. Algumas fundações argumentam que isso também lhes permite dedicar mais tempo para fazer as doações, o que produz resultados melhores.
Mas, durante uma recessão profunda e uma era de desigualdade épica, a abordagem tradicional gera críticas, segundo as quais as fundações estariam mais interessadas em se preservar do que em ajudar os necessitados.
Caminho próprio
O desembolso de MacKenzie - US$ 6 bilhões em cerca de cinco meses - só acentuou o ritmo moroso de seus colegas. E também a distinguiu de seu ex-marido, o homem mais rico do mundo. Bezos firmou alguns grandes compromissos de caridade, mas não fez da filantropia uma grande prioridade.
MacKenzie, que não quis fazer comentários, ganhou a atenção do público há quase dois anos, com o anúncio de que ela e Bezos estavam se divorciando. Como resultado, ela recebeu 4% das ações da Amazon, à época avaliados em US$ 38 bilhões. Hoje, valem cerca de US$ 62 bilhões, embora não esteja claro quantas ações ela ainda possui.
Em sua postagem no Medium, MacKenzie contou como sua equipe usou centenas de e-mails e entrevistas por telefone e milhares de páginas de análise de dados para filtrar 6.490 potenciais destinatários das doações. Depois de uma “pesquisa mais profunda” em 822 instituições, ela e seus conselheiros selecionaram 384 grupos para receber quase US$ 4,2 bilhões.
“Geralmente você não vê filantropos muito grandes perambulando por aí, querendo depositar milhões de dólares silenciosamente em organizações com as quais se preocupam”, disse Adam Zimmerman, presidente e diretor executivo da Craft3, que concede empréstimos a pequenas empresas em Oregon e Washington e que recebeu uma doação de US$ 10 milhões de Scott. “O primeiro e-mail ficou preso na minha caixa de lixo eletrônico”.
MacKenzie anunciou os nomes dos grupos que receberam as doações, mas não revelou quanto cada um recebeu. E, embora tenha apresentado uma lista de quase 400 organizações, ela bem poderia ter feito as doações para outros grupos.
Se MacKenzie estivesse fazendo as doações por meio de uma fundação, seria obrigada a divulgar publicamente os valores e destinatários. Mas ela não está usando uma fundação. Em vez disso, pelo menos algumas de suas doações - incluindo a da YWCA de Chicago - se deram por meio de um fundo de doadores da Fidelity. Esse fundo acabará revelando os grupos que receberam dinheiro, mas não é obrigado a dizer quem está por trás de cada doação. MacKenzie não tem obrigação de divulgar publicamente nada sobre suas doações.
“Ela não foi transparente quanto aos veículos utilizados para a filantropia, nem quanto ao processo”, disse Reich, do Centro de Filantropia e Sociedade Civil de Stanford. “O poder precisa de escrutínio”.
Mas a crítica tende a ser mais construtiva do que mordaz.
“Estamos num momento muito polarizado, onde há uma riqueza enorme, uma riqueza obscena, poderíamos dizer, nas mãos de pouquíssimos indivíduos da elite”, disse Elizabeth Dale, professora especializada em filantropia na Universidade de Seattle. “Se a escolha dessas pessoas fica entre se agarrar a essa riqueza ou doá-la, sempre vou ficar do lado da doação”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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