O Facebook abusa do seu poder de monopólio no País e viola a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ao coletar dados do WhatsApp para impulsionar a monetização de conteúdo na rede social, afirma Flora Rebello Arduini, coordenadora da organização não-governamental internacional SumOfUs, em entrevista ao Estadão.
Nesta quinta-feira, 15, a entidade lança a primeira campanha no País para pressionar as autoridades brasileiras a exigir uma alteração na política de privacidade do WhatsApp, que entra em vigor daqui a um mês. Com a mudança, informações de usuários do aplicativo de mensagens podem ser utilizadas pelo Facebook para preparar anúncios na rede social, aperfeiçoando a plataforma para negócios alcançarem mais pessoas, por exemplo.
O Facebook, dono do mensageiro e também da rede social Instagram, garante que a nova política não irá violar a privacidade do usuário do WhatsApp. Segundo a empresa, que detém as maiores redes sociais do mundo, as mensagens continuam criptografadas de ponta a ponta (o que garante que nem a própria companhia tem acesso ao que é escrito) e o objetivo da integração entre o conteúdo das duas plataformas é monetizar o conteúdo para anúncios publicitários.
A nova política de privacidade, quando anunciada pelo Facebook em janeiro deste ano, foi criticada e fez com que o grupo de Mark Zuckerberg adiasse a mudança para maio, a fim de “convencer” os usuários a adotarem a nova política. Caso não concordem com a mudança, as pessoas não poderão utilizar o aplicativo.
Flora aponta, no entanto, que essa mudança de privacidade no mensageiro não é válida para os usuários nos territórios da União Europeia e do Reino Unido, graças à vigência da GDPR, legislação aprovada no bloco europeu em 2016 e que serviu de inspiração para a nossa LGPD.
“O Facebook faz uso de um comportamento de dois pesos e duas medidas. Fica claro que esse compartilhamento (de dados) não é necessário e que a empresa trata os cidadãos brasileiros como de segunda classe”, critica a especialista, formada em Relações Internacionais pela Universidade de Milão, mestrado em Direitos Humanos pela Universidade de Maastricht e com carreira em pesquisa sobre redes de desinformação na internet.
No próximo dia 22, o Procon-SP irá realizar uma reunião com o Facebook para pedir esclarecimentos sobre a política de privacidade do WhatsApp com base na LGPD e no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
O WhatsApp, em declaração, afirma que a atualização não amplia a capacidade de compartilhamento de dados entre as plataformas, que a nova política de privacidade diz respeito à maior transparência entre contas comerciais e clientes no aplicativo de mensagens e que os usuários poderão decidir se optam ou não por interagir com contas comerciais, o que faria a coleta de dados. “O WhatsApp permanece comprometido com a proteção da privacidade das pessoas e a companhia atende as legislações de proteção de dados aplicáveis, incluindo a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil”, declarou a empresa.
Leia abaixo a entrevista com Flora Rebello Arduini:
Qual é o principal problema da nova política de privacidade do WhatsApp?
É o fato de que o Facebook se acha no poder ou na liberdade de simplesmente coletar e utilizar os dados dos usuários do WhatApp da maneira como quiser, com fins de marketing e análise de dados - em palavras simples, para vender e monetizar os dados. Essa situação é problemática desde 2016, quando essa prática começou a ser feita. O compartilhamento não é novo, mas o problemático dessa política é que eles vão ampliar os dados a serem coletados e o usuário vai ser obrigado a aceitar essa condição abusiva e ilegal de compartilhamento de seus dados pessoais com o grupo Facebook, que tem um péssimo historico de como lida com os dados. Eles não oferecem o consentimento previsto pela legislação brasileira, segundo o qual os usuários têm o direito de definir quais dados podem ser compartilhados para o uso de algum aplicativo. Segundo um parecer jurídico totalmente independente e que encomendamos, essa ação coordenada é ilegal porque fere o Marco Civil da Internet, o CDC e a LGPD.
Um dos fatores que nos preocupa bastante, e é escandaloso, é que o Facebook faz isso durante a pandemia, quando o WhatsApp tem 120 milhões de usuários no País. É mais da metade da população brasileira com o aplicativo instalado. O monopólio é evidente e o Facebook faz uso abusivo do monopólio para aprovar essa política no momento em que mais usamos o aplicativo, quando cada minuto de distanciamento salva vidas e em que pessoas dependem do aplicativo para ter o seu ganha-pão.
Existem outras opções de aplicativos no mercado. Por que não trocar?
A gente deve ter a opção de sair de um aplicativo e ir para outro e é bem propício ter diversas formas de se comunicar. Mas é importante ressaltar o monopólio de mercado do Facebook. Mesmo se você sair do WhatsApp, você não encontra parte das pessoas em plataformas como Signal. Então, tem o fato da ilegalidade pela nossa legislação e tem o fato de que usam esse monopólio para justamente abusar do poder deles para passar a política mais apropriada aos seus negócios. Ficou bem claro no histórico da empresa que o lucro vem acima da privacidade e da ética.
Como o resto do mundo encarou a mudança?
Na União Europeia, por conta da GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, na sigla em inglês), o Facebook não pode compartilhar os dados dos usuários do WhatsApp com o grupo Facebook. Então, existe um comportamento de dois pesos e duas medidas. O Facebook trata os cidadãos brasileiros como de segunda classe, mas o País é o segundo maior mercado no mundo. A Alemanha abriu ontem outra investigação contra o Facebook e, de última hora, a Irlanda abriu outra investigação sobre os dados vazados de 533 milhões de pessoas. É necessário que as autoridades no brasil tomem as rédeas da situação. De forma global, o Facebook vai ter acesso a dados de 2 bilhões de usuários. Não existe na história uma empresa com acesso e cruzamento de tantas pessoas de uma hora para a outra.
Essa mudança de política de privacidade já não era esperada. Por que a surpresa?
Na verdade, não foi uma surpresa. Era um movimento óbvio e por isso precisa mudar a lentidão por parte das autoridades. Mas vale deixar claro que, em 2014, quando o Facebook comprou o WhatsApp, publicamente prometeu que não monetizaria os dados dos usuários. De onde eu venho, isso se chama mentira. Eles disseram que isso era inviável, mas sempre houve a possibilidade de compartilhamento. Tanto que, logo depois da primeira mudança em 2016, o criador do WhatsApp saiu da empresa porque ficou assustado com a postura do Facebook. O Facebook deu uma expectativa para os usuários de que seguiria um modelo de negócio e mudou esse modelo de negócio de forma unilateral.
Temos amparo legal para barrar uma decisão dessas?
A boa notícia é que sim. É importante que a gente veja que o CDC, a LGPD e o Marco Civil da Internet conversam entre si. São três normativas que devem nos amparar contra esse abuso de poder. Temos a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e também o Cade para olhar essa questão pelo lado concorrencial. Temos o Procon, as defensorias, o Ministério Público, a Senacon. Temos autoridades e respaldo jurídico para agir contra essa política. Em notificação da SumOfUs às autoridades, a gente pede a suspensão da alteração dos termos de uso e de política de privacidade, o fim da integração de dados entre WhatsApp e Facebook em harmonia ao que fazem no Reino Unido e na União Europeia e, terceiro, que respeitem as legislações brasileiras e não punam os usuários que neste momento não aceitam ter os dados compartilhados.
Você tem visto um movimento das autoridades em seguir com esse processo?
Foi anunciado que a Senacon tem uma investigação que corre sob sigilo sobre essa questão. O Procon já chamou o Facebook para uma reunião, o Cade ainda não se pronunciou publicamente e a ANPD vem com esse silêncio preocupante. Espero que o silêncio seja para estarem olhando com muita cautela e muito detalhe a essa questão, mas que não seja por paralisação por parte da autoridade.
O que a sociedade civil pode fazer?
Precisa fazer pressão. Usuários precisam enxergar nossos direitos digitais como fundamentais. O consumidor precisa entender a lógica dos dados como um serviço a ser contratado. Quanto mais outras organizações da sociedade civil fazem pressão e se posicionam, mais o Facebook vai sentir diante dos olhos das relações públicas que eles precisam agir. Não acho que vão agir de forma voluntária.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.