Falha em reconhecimento facial leva homem à prisão nos EUA

Trata-se do terceiro homem negro conhecido a ser preso injustamente com base na tecnologia de reconhecimento facial

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Por Kashmir Hill
Atualização:
Nijeer Parks é o terceiro caso de prisão injusta com base em correspondência falsa de reconhecimento facial Foto: Mohamed Sadek/The New York Times

Em fevereiro de 2019, Nijeer Parks foi acusado de furtar doces e de tentar atropelar um policial em um hotel na cidade de Woodbridge, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Ele foi identificado por um policial que usou um software de reconhecimento facial, apesar de estar a 50 quilômetros do local no momento do incidente.

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Ao todo, Parks passou 10 dias na cadeia e gastou cerca de US$ 5 mil com sua defesa. Em novembro do mesmo ano, o caso foi encerrado por falta de provas.

Parks, de 33 anos, agora está processando a polícia, o promotor e a cidade de Woodbridge por prisão indevida, encarceramento injusto e violação de seus direitos civis.

O caso dele é o terceiro de que se tem notícia de alguém que foi preso injustamente com base em uma correspondência falsa de reconhecimento facial. Nos três casos, as pessoas identificadas erroneamente pela tecnologia foram homens negros.

A tecnologia de reconhecimento facial é conhecida pelas falhas. Em 2019, um estudo realizado nos EUA envolvendo mais de 100 algoritmos de reconhecimento facial revelou que eles não funcionam bem em rostos de negros e asiáticos. Dois outros homens negros - Robert Williams e Michael Oliver, ambos moradores da região de Detroit - também foram presos por crimes que não cometeram com base em erros de reconhecimento facial. Assim omo Parks, Oliver está processando a cidade por ter sido preso injustamente.

Nathan Freed Wessler, advogado que trabalha com a ONG União Americana pelas Liberdades Civis e defende o fim do uso da tecnologia de reconhecimento facial por parte da polícia, afirmou que os três casos demonstram “a maneira como essa tecnologia penaliza desproporcionalmente a comunidade negra”.

“Muitas pessoas estão vindo a público agora denunciar que foram presas injustamente por causa dessa tecnologia de vigilância falha e violadora de privacidade”, afirmou Wessler. Ele se preocupa com a existência de outras prisões e até condenações injustas que não foram reveladas até o momento.

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As autoridades policiais defendem frequentemente o uso do reconhecimento facial, apesar de suas falhas, afirmando que a tecnologia é usada somente como pista nos casos e não motiva diretamente as prisões. Mas a experiência de Parks é mais um exemplo de uma prisão que teve como base quase única a correspondência sugerida pelo software.

Detalhes do crime

Em um sábado de janeiro de 2019, dois policiais compareceram ao hotel Hampton Inn em Woodbridge depois de receberem uma denúncia de um homem que estaria roubando petiscos da loja de souvenires do hotel.

O suposto ladrão - um homem negro de aproximadamente 1,80 metro de altura, que usava uma jaqueta preta - estava no escritório da companhia de locação de veículos Hertz, na recepção do hotel, tentando estender o aluguel de um Dodge Challenger cinza. Os policiais o abordaram, e ele se desculpou, de acordo com o registro do caso. Ele afirmou que pagaria pelos petiscos e mostrou aos policiais uma carteira de motorista do Tennessee.

Quando os policiais verificaram o documento, descobriram que era falso. De acordo com o registro do caso, um dos policiais notou um “grande saco de substância análoga a maconha” no bolso do homem. Eles tentaram algemá-lo. Segundo a polícia, o homem então saiu correndo na direção do carro que tinha alugado, deixando um sapato para trás.

Ao fugir, o homem atingiu com seu veículo um carro de polícia que estava estacionado em uma coluna da fachada do hotel, afirmou a polícia. Um dos policiais disse que teve de saltar para sair do caminho do suspeito e evitar ser atropelado. O carro alugado foi encontrado posteriormente, abandonado em um estacionamento a 1,6 quilômetro de lá.

Tecnologia

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Um detetive do Departamento de Polícia de Woodbridge enviou a foto da carteira de motorista falsa para agências estaduais de segurança que têm acesso à tecnologia de reconhecimento facial, de acordo com um relato da polícia.

No dia seguinte, investigadores estaduais afirmaram ter encontrado uma correspondência de reconhecimento facial: Parks, que vivia em outra cidade, chamada de Paterson, a 50 quilômetros de lá, e trabalhava em um mercado de alimentos. O detetive comparou o documento de identidade estadual de Nova Jersey de Parks com a carteira de motorista falsa do Tennessee e concluiu que se tratava da mesma pessoa. Depois que um funcionário da Hertz confirmou que a foto da carteira de motorista do Tennessee era do ladrão, a polícia obteve um mandado de prisão contra Parks.

“Não acho ele parecido comigo”, afirmou Parks. “A única coisa que temos em comum é a barba.”

A prisão equivocada de Parks foi relatada primeiramente pela NJ Advance Media. O relato afirmou que o aplicativo de reconhecimento facial Clearview AI foi usado no caso, com base em uma declaração no processo de Parks. O advogado de Parks, Daniel Sexton, afirmou que havia inferido que o Clearview AI tinha sido usado em razão de reportagens a respeito de reconhecimento facial em Nova Jersey, mas agora acredita ter se confundido.

A ferramenta de reconhecimento facial Clearview AI utiliza bilhões de fotos a partir da internet pública, incluindo de redes sociais como Facebook, LinkedIn e Instagram. O fundador do Clearview AI, Hoan Ton-That, afirmou que as autoridades ligadas às agências estaduais que analisaram as informações desse caso não usaram o aplicativo de sua empresa naquele momento.

De acordo com o relatório policial, a correspondência nesse caso era relativa à foto de uma habilitação, que estaria armazenada em um banco de dados do governo, ao qual o Clearview AI não tem acesso atualmente. Os agentes envolvidos no estabelecimento da correspondência - do Centro de Inteligência do Estado de Nova York, do Centro Regional de Operações de Inteligência de Nova Jersey e dois investigadores estaduais - não responderam a questionamentos a respeito de qual sistema de reconhecimento facial foi usado.

Em janeiro, depois de o New York Times publicar uma reportagem a respeito do Clearview AI, o procurador-geral de Nova Jersey, Gurbir S. Grewal, estabeleceu uma moratória quanto ao uso do Clearview pela polícia e anunciou a abertura de uma investigação a respeito “desse produto ou de produtos semelhantes”. Um porta-voz do gabinete do procurador-geral afirmou que a Divisão de Justiça Criminal de Nova Jersey ainda está avaliando o uso de sistemas de reconhecimento facial no estado e que uma política de regulação do seu uso está em desenvolvimento.

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Medo

Após a polícia prender Parks, ele ficou 10 dias detido no Centro Correcional do Condado de Middlesex. O sistema de recusa à fiança de Nova Jersey utiliza um algoritmo que considera o risco representado pelo acusado, em vez do dinheiro que ele tem à disposição, para determinar se o réu pode ser solto antes do julgamento.

Uma década atrás, Parks foi preso duas vezes e cumpriu pena por vender drogas. Ele foi solto em 2016. Sua nota na avaliação de risco para segurança pública, que teria levado em conta suas condenações anteriores, era alta o suficiente para que ele não fosse liberado após sua primeira audiência. A mãe e a noiva dele contrataram um advogado particular, que conseguiu tirá-lo da cadeia e inscrevê-lo em um programa de monitoramento até o julgamento.

Seu histórico anterior com o sistema de justiça criminal é o que torna esse incidente tão assustador, afirmou Parks, porque esse teria sido seu terceiro delito grave, o que implica no risco de ele ser sentenciado a uma longa pena. Quando o promotor ofereceu um acordo, ele quase aceitou, apesar de ser inocente.

“Sentei com a minha família e discutimos a questão”, afirmou Parks. “Tinha medo de ir a julgamento. Eu sabia que, se perdesse, pegaria 10 anos.”

Parks conseguiu obter provas de que, no momento do incidente, ele estava realizando um envio de dinheiro em uma farmácia a 50 quilômetros do local. Em sua última audiência judicial, ele disse à Corte que desejava ir a julgamento para poder se defender. Alguns meses depois, porém, o caso foi encerrado.

Robert Hubner, chefe do Departamento de Polícia de Woodbridge, recusou-se a comentar o caso em razão do processo em andamento, mas afirmou que seu departamento não foi notificado da queixa. O gabinete do promotor do Condado de Middlesex também se recusou a comentar.

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O processo de Parks contra a prisão indevida ainda não solicita reparações.

“Fui encarcerado sem nenhum motivo”, afirmou Parks. “Eu vi isso acontecer com outras pessoas. Vi isso no noticiário. Mas nunca pensei que poderia acontecer comigo. Foi uma provação muito assustadora.” /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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