O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do artigo 19 do Marco Civil da Internet, previsto para 2020, coloca em risco a liberdade de expressão e os diferentes modelos de negócio da internet brasileira. A opinião é de Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio). O especialista em direito digital fala com propriedade sobre o assunto: Souza é considerado o ‘pai’ do artigo 19, um dos maiores pontos de debate durante o processo de construção do Marco Civil.
“Sem o artigo 19, caminhamos para uma internet menos diversa”, explicou ele em entrevista exclusiva ao Estado.
Um dos fatores agravantes relacionados ao julgamento é a responsabilização das plataformas de internet sobre notícias falsas - tivesse ocorrido em outra época, talvez a corte não estivesse observando a constitucionalidade do artigo sob a ótica dos perigos das ‘fake news’. Souza diz que essa discussão está moldando o debate, mas que a nulidade do artigo 19 não é a solução para o problema.
“A desinformação é um problema complexo, que envolve uma solução que precisa ser jurídica, econômica, social e tecnológica. Não é só a existência ou não do artigo 19 que resolverá o problema”, diz. Confira abaixo os principais pontos da conversa.
O que está em risco caso o artigo 19 seja considerado inconstitucional?
O que está em risco é a liberdade de expressão na internet brasileira, que sofreria a restrição natural derivada da insegurança jurídica relacionada ao regime de responsabilização das mais diversas plataformas. Está em risco o modelo de operação não apenas das grandes empresas de tecnologia, como Facebook e Google, mas também uma série de outros modelos. Entre eles: Wikipédia, sites de reclamação de consumidor, e plataformas de jornalismo comunitário. Todos seriam fortemente atingidos com o desaparecimento do artigo 19.
Da forma que se desenhou o julgamento no STF, os representantes que defenderão a constitucionalidade do artigo 19 são uma associação profissional, o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), e as maiores empresas de tecnologia. A proteção que o artigo 19 oferece não é apenas para as grandes companhias. Ele oferece proteção para qualquer plataforma que dependa de conteúdo de terceiros na internet.
Podemos caminhar para um cenário de autocensura?
Sim, e dessa forma caminhamos para uma internet menos diversa. Se aparecer um conteúdo que seja mais crítico, que deixa alguma subjetividade sobre se lesiona ou não a honra de alguém, a plataforma vai remover.
O artigo 19 isenta as plataformas de responsabilidades?
Muito se imagina que o artigo 19 isenta as plataformas de toda responsabilidade e isso não é verdade. Ele isenta de responsabilidade por conteúdo de terceiros. Caso as companhias causem algum dano diretamente, elas respondem por isso. O artigo 19 impede o Facebook de ser responsabilizado diretamente por alguma postagem. Por outro lado, se o Facebook vai adiante e remove um conteúdo porque entende que um conteúdo transcende os termos de uso, o Facebook pode e vem sendo responsabilizado nos tribunais brasileiros quando remove esse material de forma abusiva.
Quais os efeitos para pequenas empresas e startups?
As grandes plataformas têm os recursos financeiros e o conhecimento jurídico para enfrentar uma litigância, mas as pequenas e médias empresas não vão ter. Se você tem uma nova grande ideia no Brasil para desenvolver um site que usa conteúdo do usuários, subitamente você está em maus lençóis. Vale lembrar: vários modelos de negócios inovadores têm no seu cerne a ideia de que a plataforma será constituída pelo conteúdo dos seus usuários.
O efeito de censura em pequenos sites jornalísticos parece ser bem claro. As restrições também poderiam afetar os grandes veículos?
Sim, pois em suas versões digitais há conteúdos de terceiros que podem aparecer dos mais diferentes jeitos. Por exemplo, os comentários nas notícias. Ou o Google poderia derrubar material noticioso de suas buscas. O problema disso é a insegurança jurídica. O caso do ‘Baby Yoda’, que aconteceu recentemente ilustra isso. A plataforma Giphy resolveu banir de sua plataforma os gifs do Baby Yoda, que apareceu no final da série Mandalorian, da Disney+. A Giphy não fez isso porque foi notificada judicialmente, e sim porque ficou com medo de processos pelos gifs que os usuários estavam fazendo do personagem. Esse é o típico efeito de um cenário de insegurança jurídica: as plataformas não sabem qual é a melhor solução. Na dúvida, é melhor remover. Isso vale para gifs, mas afeta qualquer tipo de conteúdo.
A discussão sobre ‘fake news’ está moldando o julgamento do artigo 19?
Muito. A preocupação aqui é que para acabar com o problema da desinformação vai se criar dois problemas. Removendo o artigo 19, você não só não acaba com o problema da desinformação - ao contrário, você o agrava - como também você cria o problema da insegurança jurídica. A desinformação é agravada, pois à medida em que você gera uma situação de insegurança jurídica, a tendência é que conteúdo seja removido para evitar riscos. Uma vez fazendo isso, os conteúdos controversos e limítrofes serão bloqueados e restringidos até nas maiores plataformas, que, bem ou mal, têm relatórios de transparência, que colaboram com as autoridades, que oferecem informações sobre o seu funcionamento. O conteúdo mais crítico, que é o que mais gera desinformação, não vai desaparecer da internet. Ele vai migrar para outras plataformas, normalmente ambientes menos transparentes e menos controlados. Os conteúdos ficarão cada vez mais escondidos em plataformas mais isoladas de escrutínio.
Como equilibrar o artigo 19 com o problema da desinformação?
A desinformação é um problema complexo, que envolve uma solução que precisa ser jurídica, econômica, social e tecnológica. Não é só a existência ou não do artigo 19 que resolverá o problema. A desinformação requer trabalho legislativo einvestigação séria sobre as razões econômicas e financeiras para a publicação de notícias falsas, memes e outros conteúdos direcionados a desinformar. É necessário um debate social sobre educação digital para ajudar as pessoas a reconhecerem melhor conteúdo feito para desinformar. Por fim, tecnologia: envolver plataformas que apresentam uma melhor compreensão sobre esse tipo de material. Todos temos intranquilidade com desinformação, mas anular o artigo 19 é optar por algo que não resolve o nosso problema.
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