O uso de inteligência artificial (IA) para prever mortes de pacientes já é uma realidade em hospitais em diversos países, incluindo o Brasil. Agora, algoritmos querem ir além e nos colocar em contato com pessoas que já morreram – ou quase isso.
Uma leva de projetos quer usar IA para replicar conhecimentos, memórias e características de pessoas que cruzaram a fronteira final da vida. A ideia é preservar o legado e permitir que os parentes possam superar o luto de uma nova forma.
Um desses aplicativos é o Legathum, criado pelo cearense Deibson Silva, que decidiu transformar a tristeza pela perda da avó aos 18 anos em motivação para o projeto. “O intuito não é replicar a pessoa, mas seu conhecimento, suas memórias, sua mentalidade, seu perfil de comportamento – e a partir daí permitir que filhos e netos possam interagir com essa IA e acessar as lembranças”, resume o neuropsicólogo, formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
A ideia por trás do Legathum não tem nada de místico: uma das principais atividades de algoritmos na internet nos dias atuais é recolher dados sobre pessoas, detectar padrões e tirar conclusões sobre o comportamento. É assim que o Spotify opera para oferecer playlists personalizadas. Com o Legathum, a diferença é que o serviço se alimentará com informações de pessoas mortas.
A ideia é que inicialmente o app reúna e repasse as memórias e características de quem faleceu por meio de uma linha do tempo e um vídeo – posteriormente, o objetivo é simular chamadas de vídeo e conversas. A expectativa é que a última fase seja atingida em até cinco anos. Serão três etapas. Inicialmente, a partir das informações coletadas, o app vai transcrevê-las e fornecer uma espécie de livro-biografia, registrando a vida da pessoa. Na segunda, fará um vídeo.
Na etapa final, que exigirá algoritmos mais avançados, a IA promete reproduzir a voz e o rosto da pessoa e funcionar como uma assistente virtual nas tomadas de decisões dos entes queridos. A IA terá autonomia para funções como escolher a música que a pessoa teria escolhido em vida para um vídeo. A expectativa é que ela possa até dar conselhos. Um dos consultores de tecnologia do projeto é Alberto Todeschini, chefe do departamento de inteligência artificial da Universidade de Berkeley, da Califórnia.
Dados
Para que funcione bem, a máquina precisa ter acesso a um alto volume de dados. Por isso, o ideal é que aqueles que gostariam de ser “eternizados” na máquina forneçam essas informações ao sistema.
A especialista em marketing digital Cris Saviani faz parte do primeiro grupo testando o Legathum. Ela estuda a cabala – por isso, a possibilidade de ter um ambiente em que seus conhecimentos sejam repassados a deixa animada. “É uma maneira de você salvar a maneira como você pensa, e documentar tudo ao seu respeito”, conta Saviani, que também atua como programadora web do projeto.
Nesta primeira fase, a captação das informações é feita por uma espécie de chatbot no WhatsApp. Uma assistente virtual pergunta, todos os dias, sobre aprendizados, memórias significativas e conhecimentos técnicos que a pessoa queira guardar para o futuro. Isso é captado por áudio, texto, imagem e vídeo. “Quero que todas as pessoas possam deixar o seu legado, não apenas para quem tem condições financeiras melhores”, defende Silva.
Ficção e realidade
Popularmente, a ideia de uma versão digital de pessoas que já morreram ganhou atenção em um episódio de Black Mirror, a série de ficção científica da Netflix que discute sobre os perigos da tecnologia. O episódio Be Right Back conta a história de uma mulher que perde o marido, mas mantém contato com “ele” por meio de uma rede social. A discussão sobre herança digital, porém, não era inédita. Ao longo dos últimos anos, projetos tentaram utilizar a tecnologia para atenuar a ausência da perda.
Fundada em 2014, a empresa de tecnologia Eternime está testando um app que permitirá ao usuário criar um avatar digital de si que ficará disponível após sua morte. Com foco em permitir a programação de mensagens futuras para os amados, a empresa SafeBeyond também pretende assegurar o legado de seus usuários ao coletar suas informações em vida e disponibilizá-las após a morte.
Já a Microsoft registrou uma patente para uma ferramenta que replicaria a pessoa que faleceu por meio de IA. Ele lembra o propósito do Legathum: “interagir” com quem ficou. O acesso seria por meio de um app ou de um assistente virtual.
Embora possam ajudar a lidar com o luto, serviços do tipo também são vistos com ressalva – em Black Mirror, a história, claro, desandou. Maria Julia Kovacs, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), explica que a principal questão é que serviços como esse se transformam num obstáculo no processo de lidar com a perda.
“Qualquer simulacro que mantenha a ideia de que estamos em contato com a pessoa concretamente pode dificultar o processo do luto, porque o que temos que fazer é elaborar a separação”, diz Kovacz, também membro-fundador do Laboratório de Estudos Sobre a Morte da USP.
No Legathum, as pessoas autorizadas a acessar os conteúdos deixados só poderão acessá-lo após 90 dias. Serão expostas também a um aviso questionando se a pessoa está preparada para acessar as imagens. “Depois do meu luto, se eu tivesse como rever minha avó, conversar com ela e ouvir sua voz e suas histórias, seria fantástico – com certeza vejo como algo positivo”, diz Silva.
Em termos jurídicos, ainda não existem leis que tratem da continuidade da vida em meios digitais. Ainda assim, a advogada Gisele Truzzi, especialista em Direito Digital, defende que as preferências do indivíduo devem ser oficializadas por meio do testamento.
“Todo conteúdo que venha ao mundo após o falecimento tem de ser explicitado em vida. Essa é uma questão que pode colocar em xeque a IA, pois é impossível saber os resultados gerados pelos sistemas”, diz a fundadora da Truzzi Advogados. A especialista ainda pondera os limites dos aplicativos. “É preciso saber até onde o software pode ir e garantir que a tecnologia vai deixar o total controle na mão do usuário”.
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