Quem vive nas redes sociais, mais especificamente no TikTok e no X (ex-Twitter), conheceu um novo hit nas últimas semanas: vídeos de gatinhos gerados por inteligência artificial (IA) acompanhados por músicas nas quais as letras originais são substituídas por sons de “miau” (a mais comum de se aparecer nessas “paródias” é a música ‘What was I made for’ da cantora Billie Eilish). Esse fenômeno combina a fofura dos gatos com um toque melancólico, criando um efeito divertido para uns e triste para outros.
Mas não apenas gatinhos fofos (e sofridos) que protagonizam esses conteúdos gerados por IA. Há também vídeos manipulando imagens de personagens famosos de filmes, como as princesas da Disney. Enquanto os vídeos de gatinhos geralmente possuem músicas “miau miau”, os vídeos com personagens de filmes são acompanhados por músicas tristes.
O perfil @la.team.france do TikTok é um dos principais que publica esses vídeos com os gatinhos gerados por IA. Um de seus vídeos mais famosos alcançou mais de 68,1 milhões de visualizações e mais de 7,7 milhões de curtidas.
A origem dessa tendência não é certa, mas pode ser rastreada até a China, onde a plataforma Douyin, versão chinesa do TikTok, se destaca como um dos primeiros lugares onde esses vídeos começaram a ganhar popularidade. Esses vídeos contam historinhas variadas, normalmente com uma lição de moral por trás, como para conscientizar os espectadores sobre o bullying, desigualdade social e até sobre questões religiosas. A estrutura é simples: uma sequência de imagens estáticas geradas por IA é acompanhada de legendas que simulam falas curtas, enquanto a música toca ao fundo.
A manipulação de personagens conhecidos, normalmente, acrescentam uma camada non sense às produções.
“As minhas histórias tem começo, meio e fim. Tudo isso não é estudado, é o que vem à mente, e a IA me ajuda a transformar em imagem”, diz Michelini Festi, artista de 25 anos. Ela é dona do perfil @ayshaaventuras no TikTok (conta com mais de 110,7 mil seguidores) que publica vídeos de historinhas envolvendo personagens de filmes animados populares.
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Como esses vídeos são produzidos?
Os vídeos de gatinhos gerados por IA utilizam programas de IA generativa, como GPT-4 e o Microsoft Image Creator - claro que o app utilizado varia de criador para criador. O material é sempre gerado a partir de comandos de texto, e tenta seguir a criatividade do usuário.
A IA generativa não aparece só aí: a criação das músicas com a letra “miau miau”, que acompanham alguns desses vídeos, envolve várias etapas, com ajuda da IA.
Primeiro, a letra da música é manualmente convertida para “miau”. Em seguida, utiliza-se a síntese de voz para gerar os sons de miados. Ferramentas de síntese de voz, como Vocaloid ou Synthesizer V, são ajustadas para emitir sons de miados de gatos, mantendo o ritmo e a melodia da música original. Após a geração dos miados, a faixa de áudio é mixada usando softwares de edição de áudio como Adobe Audition e Audacity, garantindo que os “miaus” acompanhem a melodia.
Os vídeos que manipulam imagens de personagens famosos seguem um processo semelhante, mas com algumas diferenças. Em vez de usar IA generativa para criar novas imagens, os criadores geralmente usam a tecnologia para manipular imagens já existentes dos personagens. “Eu uso o programa Gencraft - de geração de imagens com IA - e também um editor de vídeo para finalizar e juntar tudo”, conta Michelini.
A música de fundo nesses vídeos, por sua vez, é escolhida para complementar o tom emocional do conteúdo, mas normalmente não é manipulada por IA, mantendo as letras e melodias originais das canções tristes.
Direitos autorais e imagens manipuladas por IA
Esses vídeos que manipulam imagens de personagens conhecidos, como as princesas da Disney, Shrek (DreamWorks), Annabelle (Warner Bros.) e Pennywise (Warner Bros.), levantam questões sobre direitos autorais.
As empresas que detêm os direitos desses personagens são rigorosas na proteção de suas propriedades intelectuais. A Disney, por exemplo, é conhecida por sua postura firme em relação a qualquer uso não autorizado de seus personagens. Mas, isso depende do tipo do conteúdo produzido com seus personagens.
“Pela nossa Lei de direitos autorais, uma pessoa não poderia fazer modificações, alterações, adaptações no personagem, seja com IA, seja com outra coisa, se não tiver autorização do criador”, explica a advogada Alice Lana. “Não faz muita diferença se aquilo foi criado, animado com IA ou desenhado a mão no ponto de vista de direitos autorais, porque o que está protegido ali é a ideia expressa no personagem”.
O inciso IV do Art. 24 da Lei de direitos autorais afirma que é direito moral do autor “de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”.
No entanto, há exceções para o uso de materiais do tipo. No caso desses vídeos do TikTok, eles se encaixariam no conceito de paródia, que é quando uma obra é recriada a partir de um ponto de vista cômico, e isso é uma exceção da Lei, previsto no Art. 47 da Lei de direitos autorais. “Se esse vídeo for uma paródia, uma paráfrase, isso é permitido”, explica a advogada, “você quer fazer a paródia de uma obra, você não precisa pedir autorização para o autor”.
Michelini também acredita que não está violando as obras de grandes produtoras. “Sobre a questão dos direitos autorais nos meus vídeos, isso depende da cena, ainda mais se envolver algo criminoso, tipo arma, mas como meus conteúdos não são violentos, é difícil ter problemas com isso”, explica a dona do perfil @ayshaaventuras.
*Alice Labate é estagiária sob supervisão do editor Bruno Romani
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