Nos últimos 25 anos, o entretenimento adulto foi superado por dois modelos de negócios: Pornhub, um site gratuito sustentado por anúncios, e OnlyFans, uma plataforma de assinatura em que os atores individuais controlam seus negócios e seu destino. Agora, uma nova mudança está no horizonte: modelos de inteligência artificial (IA) que criam imagens e vídeos realistas, permitindo que as pessoas criem o tipo de pornografia que quiserem.
Alguns proprietários de sites acreditam que esse é um privilégio pelo qual as pessoas pagarão e estão correndo para criar modelos de IA personalizados que ― diferentemente do conteúdo higienizado do mecanismo de vídeo Sora da OpenAI ― utilizam um vasto repositório de imagens e vídeos pornográficos.
Essa visão do futuro do setor levanta uma série de questões difíceis: como compensar os artistas cujas imagens são usadas para criar conteúdo de IA? Será que consumidores ficarão entusiasmados com a pornografia com IA?
Mas a questão mais complicada pode ser como evitar abusos. Os geradores de IA têm limites tecnológicos, mas não morais, e é relativamente fácil para os usuários enganá-los para que criem conteúdo que mostre violência, estupro, sexo com crianças ou uma celebridade ― ou até mesmo uma paquera da firma que nunca consentiu. Em alguns casos, os próprios mecanismos são treinados em imagens pornográficas cujos sujeitos não concordaram explicitamente com o novo uso. Atualmente, nenhuma lei federal nos EUA protege as vítimas de deepfakes não consensuais.
“A IA não pode substituir os artistas (adultos), e as pessoas que dizem isso estão entendendo mal o que os artistas fazem”, diz Heather Knox, diretora de operações da Elevated X, uma empresa de software que ajuda artistas adultos a gerenciar suas marcas online. “Mas essa tecnologia vai se popularizar e se tornará abusiva antes de ser útil.”
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O entretenimento adulto é um setor gigantesco, responsável por uma parte substancial de todo o tráfego da internet: os principais sites pornográficos recebem mais visitantes mensais e visualizações de página do que Amazon, Netflix, TikTok ou Zoom, de acordo com uma análise acadêmica publicada no ano passado no Journal of Sex Research. O setor é um habitual adotante precoce de novas tecnologias, do VHS ao DVD e a internet.
Em meados dos anos 2000, empresas de pornografia criaram sites enormes onde os usuários carregam e assistem a vídeos gratuitos, e as vendas de anúncios pagam as contas. Com o avanço da década de 2010, as estrelas adultas dominaram o marketing de mídia social e muitas migraram para plataformas de streaming por assinatura em vez de buscar contratos com grandes estúdios.
Agora a IA chegou, e os participantes de todo o setor estão correndo para descobrir o que ela significa para os negócios.
Na conferência da AVN, a maior do setor de entretenimento adulto, do ano passado, Steven Jones disse que seus colegas o olhavam “como se ele fosse louco” quando ele falava sobre oportunidades de IA: “Ninguém estava interessado”. Este ano, disse Jones, ele tem sido “a bela do baile”.
Jones é o proprietário e operador de uma coleção de sites pornográficos que já foi muito popular. Ele entrou no negócio em 1999 com um site dedicado a fotos sensuais de estudantes universitários. Ele mudou seu nome para “Lightspeed” e, em sete anos, o pai de dois filhos, casado, estava operando uma coleção de mais de 30 sites pornográficos e ganhando meio milhão de dólares por mês.
Em 2013, tudo desmoronou. O autodenominado nerd de ficção científica viu sua receita secar depois que o Pornhub ― o site ao qual Jones se refere como o “império do mal” ― começou a hospedar conteúdo gratuito. Ele acabou deixando o setor adulto por um emprego convencional na área de tecnologia.
Então, a maré do destino mudou novamente para Jones. Seu amor pela tecnologia e por programas como Jornada nas Estrelas fez com que ele acreditasse desde cedo no poder da inteligência artificial para mudar o mundo para melhor. Ao ver o público reagir aos lançamentos do bot de conversação ChatGPT da OpenAI e do mecanismo de imagem DALL-E em 2022, Jones sentiu uma empolgação que não conhecia desde que ganhou seu primeiro computador quando era adolescente.
Ele ligou para seu antigo parceiro de negócios e os dois imediatamente gastaram cerca de US$ 550 mil para garantir os domínios da Web para porn.ai, deepfake.com e deepfakes.com, disse Jones. A “Lightspeed” estava de volta.
Mas o plano de Jones de criar mecanismos de pornografia com IA de fácil utilização pelo consumidor enfrentou obstáculos significativos. As empresas por trás dos principais modelos de geração de imagens usavam limites técnicos para bloquear conteúdo “não seguro para o trabalho” e, sem imagens eróticas para aprender, os modelos não eram bons em recriar corpos ou cenas de nudez.
Um dos principais modelos, o Stable Diffusion, compartilha seu código publicamente, e alguns tecnólogos descobriram como editar o código para permitir imagens sexuais. Fãs particularmente dedicados se reúnem em fóruns como o Reddit para compartilhar suas criações de nudez, e alguns criadores autônomos de deep fake ganham dinheiro produzindo imagens abusivas de nudez de pessoas que não consentiram em aparecer. Mas para os leigos não técnicos que queriam experimentar um gerador de pornografia, as opções eram poucas.
Assim, com a ajuda de um investidor anjo, Jones contratou cinco funcionários e um punhado de prestadores de serviços no exterior e começou a criar um mecanismo de imagens treinado em pacotes de imagens pornográficas disponíveis gratuitamente, além de milhares de fotos de nudez da coleção do próprio Jones. Os usuários criam o que Jones chama de “mulher dos sonhos”, solicitando à IA descrições da aparência, da pose e do cenário da personagem. Os nus não retratam pessoas reais, diz ele. Em vez disso, o objetivo é recriar uma fantasia a partir da imaginação do usuário.
As imagens geradas por IA ficaram melhores, com o brilho computadorizado cada vez menos perceptível. Jones aumentou sua base de usuários para 500 mil pessoas, muitas das quais pagam para gerar mais imagens do que as cinco por dia concedidas às contas gratuitas, diz ele. Os “usuários avançados” do site geram pornografia com IA durante 10 horas por dia, disse ele.
Jones descreveu o site como uma “comunidade de artistas” onde as pessoas podem explorar suas sexualidades e fantasias em um espaço seguro. Ao contrário de alguns cantos do setor adulto tradicional, nenhum artista está sendo pressionado, mal pago ou colocado em perigo, diz ele. E, o que é mais importante, os consumidores não precisam esperar que seu artista favorito do OnlyFans fique online ou vasculhar o Pornhub para encontrar o conteúdo de que gostam.
Em seguida, vem o vídeo gerado por IA ― “o Santo Graal do pornô”, diz Jones. Eventualmente, ele vê a tecnologia se tornando interativa, com os usuários dando instruções a “artistas” automatizados realistas. Dentro de dois anos, diz ele, haverá “garotas que se expõe na frente da câmera totalmente feitas com IA”.
Combate ao abuso
Ainda é muito cedo para considerar o empreendimento de Jones um sucesso. No momento, toda a receita é destinada ao aprimoramento da IA. À medida que sua base de clientes cresce, o mesmo acontece com o enorme custo computacional da geração de imagens. O aluguel de um servidor da Amazon Web Services custa US$ 12 por dia e a geração de uma única imagem exige que os usuários tenham acesso a um servidor correspondente. Até o momento, seus usuários já geraram mais de 1,6 milhão de imagens.
Enquanto isso, os processos judiciais ameaçam o acesso aos dados de treinamento, que são os conjuntos de imagens pornográficas agrupadas online. Detentores de direitos autorais, incluindo jornais, fotógrafos e artistas, entraram com uma série de ações judiciais contra empresas de IA, alegando que as empresas treinaram seus modelos com conteúdo protegido por direitos autorais. Se os autores das ações ganharem, isso poderá acabar com o vale-tudo.
O que preocupa Jones são as pessoas que tentam usar as ferramentas de sua empresa para gerar imagens de abuso. Os modelos têm algumas proteções tecnológicas que dificultam aos usuários renderizar crianças, celebridades ou atos de violência. Mas as pessoas estão constantemente procurando soluções alternativas.
Às vezes, elas são bem-sucedidas. A solicitação “mulher adulta sem seios”, por exemplo, pode renderizar um personagem que parece uma criança. Jones disse que sua equipe retira imagens que outros usuários sinalizam como abusivas. Sua lista de solicitações bloqueadas contém atualmente mil termos, incluindo “high school”.
“Vejo certas coisas que as pessoas digitam e espero que elas estejam tentando testar o modelo, como nós estamos. Espero que elas não queiram realmente ver as coisas que estão digitando.”
Peter Acworth, proprietário do kink.com, está tentando ensinar um gerador de pornografia com IA a entender conceitos ainda mais sutis, como a diferença entre tortura e escravidão sexual consensual. Durante décadas, Acworth promoveu a criação de espaços ― no mundo real e online ― para que adultos consentidos explorassem interesses sexuais não convencionais.
Ele está trabalhando com engenheiros para treinar um modelo de geração de imagens em fotos de BDSM, um acrônimo para bondage e disciplina, dominância e submissão, sadismo e masoquismo.
“Não vamos permitir que (os usuários) digitem uma frase. Será uma série de caixas de seleção, como ‘Estas são as coisas que eu quero e este é o tipo de pessoa que eu quero’”, diz Acworth. Se sua empresa disponibilizar o mecanismo para os clientes, disse ele, serão necessários testes “ad infinitum” e moderadores humanos observando os resultados ― soluções caras e potencialmente inviáveis.
Ansiedade entre os profissionais do sexo
Para as pessoas que trabalham com entretenimento adulto, defender o direito de seu setor existir pode ser parte do trabalho. Tanto Jones quanto Acworth disseram que o pornô com IA é uma nova opção desejável. Mas no salão de exposições da AVN, alguns rejeitam a ideia.
Os próprios artistas tendem a ter uma visão ponderada. Se a IA criar novas formas de ganhar dinheiro ― como lucrativos acordos de licenciamento ou chatbots personificados que solicitam dicas dos fãs ― as profissionais do sexo participarão, diz a artista Stella Skye, 32.
Mas a era da IA traz poucas garantias para as pessoas, em sua maioria mulheres, que aparecem no pornô. Muitos assinaram contratos amplos que concedem às empresas os direitos de reproduzir sua imagem em qualquer mídia para sempre diz Lawrence Walters, um advogado que representa artistas adultos. Além de perderem renda, Walters disse que os artistas poderiam se ver em cenas ofensivas ou abusivas com as quais nunca consentiram.
Em dezembro, o sindicato que representa os principais atores de televisão encerrou meses de negociação com os principais estúdios, aprovando um novo contrato que incluía regulamentos sobre o uso de semelhanças com IA. Um equivalente no setor adulto é improvável, diz Mark Spiegler, agente que representa grandes nomes do entretenimento adulto.
“Esse setor é muito fragmentado para negociações coletivas”, diz ele. “Além disso, esse setor não gosta de regras.”
Dentro do salão de conferências, as empresas de IA estavam espalhadas pela área de exposição. No estande da SirenAI, uma startup que cria chatbots personificados, a artista Jenna Starr conversou com os cofundadores da empresa. Se Starr licenciasse sua imagem e sua voz, a empresa poderia criar um Jenna-bot que criasse fotos personalizadas, mensagens de voz e texto sob demanda. Os fãs poderiam solicitar e receber fotos de Jenna nua sem nenhum esforço da parte dela.
Ela fez várias perguntas à equipe da SirenAI. Que parte de sua receita a SirenAI receberia? Ela poderia rescindir seu contrato a qualquer momento? Quem seria responsável pela promoção?
Talvez a IA melhore as coisas, diz ela. Mas ela quer ver os números primeiro.
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