Popular em redes sociais como TikTok e YouTube, um método antigo de controle de gastos tem feito sucesso entre pessoas que desejam poupar parte da renda. Este é o “cash stuffing”, que, traduzindo para o português significa “encher ou rechear de dinheiro” um compartimento. A ideia é simples: as pessoas retiram quantias parciais ou totais da conta bancária e dividem o orçamento semanal ou mensal no formato físico, por meio de um sistema de envelopes. No TikTok, a hashtag #cashstuffing já acumula mais de 1 bilhão de visualizações. Mas afinal, essa tática realmente é vantajosa em um contexto de economia digital?
Nas redes, a maioria das pessoas que decidiram seguir esse método são mulheres, que dizem usar a técnica para visualizar melhor para onde o dinheiro está indo, evitar o uso do cartão de crédito, e para não precisar recorrer a planilhas de gastos. As despesas são divididas por seções, o que ajuda a visualizar os gastos direcionados para aluguel, mercado, transporte, e compras de natal, por exemplo. Há até quem separe uma parte para doações.
No entanto, na avaliação de especialistas ouvidos pelo Estadão, mesmo que seja um método capaz de reduzir as despesas e treinar o consumidor para os próprios limites financeiros no curto prazo, a técnica pode não ser a melhor escolha para quem quer economizar a longo prazo. Ela também se mostra inadequada frente às demandas atuais da economia, inserida na transformação digital.
Por que ‘cash stuffing’?
Ao não fazer uso do cartão de crédito e migrar para o formato físico do dinheiro, o sistema de envelopes vai na direção contrária desse modo automatizado de consumo. É o que explica o planejador financeiro CFP® e membro do conselho de Administração da Planejar, Flávio Pretti. “Fazer uma compra no cartão de crédito torna o gasto menos perceptível para o consumidor e, assim, ele facilmente pode perder o controle sobre as despesas”.
O especialista ainda afirma que o “cash stuffing” pode ser um sistema interessante, porque limita e setoriza os gastos, levando a uma maior consciência sobre a alocação das despesas. Mas ele alerta para alguns entraves. “É difícil mantê-lo, já que estamos em um processo de tokenização da moeda. Tudo é feito no digital. A estimativa é de que, em pouco tempo, ninguém mais faça transações em papel moeda”, destaca Pretti.
Hoje, para pagar uma conta, basta fazer a leitura de código de barras de um boleto via celular ou fazer o pagamento via Pix, de forma digital, por meio do aplicativo do banco. Adotando o sistema de envelopes, a pessoa consegue visualizar melhor o quanto gasta, mas ainda teria o trabalho de sacar o dinheiro e posteriormente depositá-lo em alguma instituição bancária para quitar a dívida.
Lai Santiago, planejadora e economista comportamental, diz que o sistema pode ser uma solução temporária para treinar o consumidor para hábitos mais sustentáveis com as próprias finanças, mas afirma que a prática pode levá-lo a perder oportunidades por não movimentar a conta bancária como deveria. “Um bom histórico financeiro pode te garantir, futuramente, um bom acesso ao crédito que poderá ajudar a financiar o sonho da casa própria, por exemplo. Para isso, dependemos desse modo digital”, ressalta.
Sobre a influência de conteúdos como o “cash stuffing” nas redes sociais, Lai diz que é preciso cautela, já que esse tipo de material costuma ser produzido de forma generalista para alcançar o máximo de pessoas possíveis. “Ele não vai entrar nas particularidades de cada um. Às vezes, a pessoa foi influenciada para aplicar um método que não é o mais eficiente ou o mais recomendado”, afirma a especialista.
Quais são os riscos de ‘cash stuffing’?
Deixar o dinheiro parado na forma física, sem nenhum rendimento, não é vantajoso caso o intuito seja poupar para objetivos a longo prazo. Segundo o planejador financeiro Flávio Pretti, é preciso observar a incidência da taxa de juros para que o dinheiro possa render ainda mais. Segundo ele, no Brasil, as taxas são altas e há alternativas para essas aplicações. “Temos opções no mercado bancário brasileiro que é possível rentabilizar esse dinheiro em um determinado período de tempo. Deixá-lo parado significa perder o potencial de capital”, afirma o especialista.
Além disso, ter o orçamento todo em mãos deixa os consumidores mais vulneráveis a roubos. Após a tendência viralizar, uma seguradora residencial no Reino Unido informou que as notificações de roubo de dinheiro aumentaram em 77% no último ano. Um cliente dessa mesma seguradora que usava o método de “cash stuffing” teve dois envelopes roubados em casa contendo £1,7 mil ( R$ 10,3 mil).
No Brasil, caso ocorra esse roubo de dinheiro, dificilmente o consumidor conseguirá reavê-lo. Nesse caso, deixar os recursos na conta digital acaba sendo uma alternativa mais vantajosa em termos de segurança. “Mesmo que ainda assim possa ocorrer tentativa de golpe ou fraude, por lá conseguimos ter mais instrumentos de fiscalização das transações”, afirma a especialista Lai Santiago.
Dicas além de guardar em casa
A técnica de guardar dinheiro em envelopes pode ser boa no início, mas deixa o consumidor mais vulnerável e limitado para pensar em investimentos futuros. Os especialistas ouvidos pelo Estadão elencam soluções mais vantajosas para economizar e garantir uma boa saúde nas finanças pessoais:
Tenha um processo de controle de gastos
Existem aplicativos que podem ajudar a controlar os gastos financeiros, como o Minhas Economias e o Spendee, ambos disponíveis para os sistemas iOS e Android. O uso de planilhas e cadernetas também são bem vindos, assim como o próprio sistema de ‘cash stuffing’ - este último, no entanto, é recomendado para uso temporário
Identifique para onde o dinheiro está indo
Após analisar os gastos mensais, o consumidor consegue visualizar se é possível cortar despesas em algum setor específico. A partir disso, ele consegue alocar melhor os seus recursos e planejar futuros investimentos.
Planeje os seus investimentos
Para uma boa saúde financeira, é fundamental que esse consumidor consiga ter uma quantia reservada para o curto e longo prazo. Uma reserva de emergência correspondente a 3 ou 6 meses da renda desse indivíduo para o curto prazo ou um fundo de previdência para a aposentadoria no longo prazo, por exemplo, são alternativas que podem ser analisadas de acordo com o perfil de cada um.
Use o crédito com parcimônia
O crédito pode ser um propulsor da vida financeira ao possibilitar o financiamento de sonhos como o primeiro carro, a casa própria ou a tão sonhada viagem para a Europa. Mas também pode ser o grande vilão do endividamento. A alternativa para sair dessa bola de neve é migrar para o débito aos poucos, o que pode contribuir para uma melhor visualização dos gastos.
Caso possível, procure uma assessoria especializada
Nem todo mundo considera contratar um planejador financeiro pelo custo adicional. Mas, uma consultoria especializada e independente pode guiar o consumidor para a tomada de decisões mais equilibradas quanto às próprias finanças, tanto relacionadas ao consumo, como também aos investimentos.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.