Três décadas atrás, Tim Berners-Lee trouxe ao mundo padrões simples e poderosos para localização, conexão e apresentação de documentos multimídia online - e assim criou a web. Agora, porém, aos 65 anos, ele acredita que o mundo online está perdido.
Berners-Lee se tornou o zelador das normas técnicas destinadas a ajudar a web a florescer como uma ferramenta igualitária de conectividade e compartilhamento de informação. Poder demais e dados pessoais demais, afirmou ele, estão nas mãos de gigantes da tecnologia como Google e Facebook. Na visão do ‘pai’ da web, essas empresas se tornaram plataformas de vigilância e guardiãs da inovação, alimentadas por dados valiosos.
Agências reguladoras têm expressado queixas similares. As grandes empresas de tecnologia estão enfrentando regras duras de privacidade na Europa e também em alguns Estados americanos, liderados pela Califórnia. Google e Facebook foram processados recentemente com base em leis antitruste.
Mas Berners-Lee está adotando uma abordagem diferente: sua resposta ao problema é uma tecnologia que atribui mais poder ao indivíduo. O objetivo, segundo ele, é caminhar na direção da “internet com a qual eu sonhei originalmente”.
O armazenamento online de dados pessoais é um ingrediente técnico essencial para alcançar esse objetivo. A ideia é que cada pessoa possa controlar seus próprios dados — como, por exemplo, sites visitados, compras com cartão de crédito, rotinas de exercícios físicos e música ouvida via streaming — em um cofre de dados individual, geralmente uma pequena fatia de espaço em servidor.
As empresas poderiam obter acesso aos dados das pessoas mediante sua permissão, por meio de uma conexão segura para uma tarefa específica, assim como acontece nos processamentos de pedidos de empréstimos bancários ou nas entregas de anúncios personalizados. Elas poderiam selecionar e se conectar a informações pessoais e usá-las, mas não poderiam armazená-las.
Contraste
A visão de Berners-Lee para soberania de dados pessoais é totalmente diferente do modelo atual de coleta e acúmulo das grandes empresas de tecnologia. O plano ecoa também partes da fórmula original da internet — um conjunto de padrões tecnológicos que os desenvolvedores podem usar para escrever programas e que empreendedores e empresas podem usar em seus negócios. Ele iniciou um projeto de software de código aberto, o Solid, e depois fundou uma empresa, a Inrupt, com John Bruce, um veterano de cinco startups anteriores, para impulsionar sua adoção.
“Trata-se da criação de mercados”, afirmou Berners-Lee, que é diretor de tecnologia da Irrupt.
A Inrupt apresentou em novembro seu software de servidor para empresas e agências governamentais. Além disso, a startup está colocando em prática uma sequência de projetos-piloto este ano, incluindo alguns em conjunto com o Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido e com o governo de Flandres, a região belga de língua holandesa.
O modelo de negócio inicial da Inrupt é cobrar taxas de licenciamento para seu software comercial, que usa a tecnologia Solid, de código aberto, mas tem melhorias de segurança e ferramentas de administração e desenvolvimento. A empresa com base em Boston já captou cerca de US$ 20 milhões em investimentos.
As startups, ressaltou Berners-Lee, são capazes de desempenhar um papel crucial na aceleração da adoção de uma nova tecnologia. Na visão dele, a internet decolou realmente depois que o Netscape introduziu seu software de navegação e a Red Hat apresentou o Linux, o sistema operacional de código aberto, aos centros corporativos de processamento de dados.
Ao longo dos anos, empresas que tiveram como foco a proteção da privacidade online dos usuários apareceram e desapareceram. O software dessas "intermediárias de dados” era frequentemente limitado e pesado, atraindo somente os clientes com mais apreço pela privacidade.
Mas a tecnologia se tornou mais veloz e mais inteligente — e a pressão sobre as grandes empresas de tecnologia está aumentando.
As empresas de tecnologia já formaram um Projeto de Transferência de Dados, comprometendo-se a tornar portáteis os dados pessoais que elas detêm. A iniciativa inclui atualmente Google, Facebook, Apple, Microsoft e Twitter.
“Nesse cenário regulatório em transformação há uma oportunidade de mercado para a empresa de Tim Berners-Lee e outras que ofereçam aos indivíduos maneiras melhores de controlar seus dados”, afirmou Peter Swire, especialista em privacidade da Faculdade Scheller de Administração, do Instituto Georgia de Tecnologia.
A Inrupt está apostando na possibilidade de que organizações confiáveis financiarão inicialmente o armazenamento online de dados pessoais - a ferramenta é gratuita para os usuários. Se o conceito decolar, serviços de dados pessoais de baixo custo ou gratuitos — similares aos servidores de e-mail de hoje — poderiam surgir.
O Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido está trabalhando com a Inrupt em um projeto-piloto para cuidado a pacientes de demência — a fase de desenvolvimento foi encerrada em janeiro. O objetivo inicial era dar aos cuidadores acesso a uma visão mais ampla sobre a saúde, as necessidades e as preferências dos pacientes.
Em Flandres, uma região com mais de seis milhões de habitantes, o governo espera que a nova tecnologia de dados possa criar oportunidades para empreendedores em empresas locais, além de serviços para os cidadãos. Dados pessoais também podem ser conectados com dados públicos e privados para criação de novas aplicações, afirmou Raf Buyle, arquiteto da informação do governo de Flandres.
Reparação
Para Berners-Lee, o empreendimento Solid-Inrupt é um projeto “de conserto”, que serve para reparar procedimentos falhos comumente adotados. Ele passou sua carreira defendendo o compartilhamento de informações, a transparência e o fortalecimento pessoal online — como diretor do World Wide Web Consortium, presidente do Open Data Institute e estudioso do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade de Oxford. Suas honrarias incluem um Prêmio Turing, frequentemente qualificado como o Nobel da ciência da computação. Na Inglaterra, onde nasceu, ele é cavaleiro — Sir Tim.
“Mas Tim ficou cada vez mais preocupado, enquanto o poder do mundo digital passou a prejudicar o indivíduo”, afirmou Daniel Weitzner, cientista pesquisador principal do Laboratório de Ciência da Computação e Inteligência Artificial do MIT. “Essa alteração é o que o Solid e a Inrupt se destinam a corrigir.”
O impulso para oferecer aos indivíduos maior controle sobre seus dados, afirmou Berners-Lee, começa frequentemente como uma questão de privacidade. Mas um novo pacto a respeito de dados, afirmou ele, exigirá que empreendedores, desenvolvedores e investidores vejam oportunidades para novos produtos e serviços, assim como viram com a internet.
A visão a longo prazo é de um mercado próspero e descentralizado, alimentado por fortalecimento pessoal e colaboração, afirmou Berners-Lee. “A visão final é muito poderosa”.
É incerto se a equipe dele conseguirá concretizar essa visão. Pessoas envolvidas no campo dos dados pessoais afirmam que a tecnologia Solid-Inrupt é acadêmica demais para os desenvolvedores profissionais. Também questionam se a tecnologia atingirá a velocidade e terá o poder de se tornar uma plataforma para aplicativos futuros, como assistentes de software animados pelos dados das pessoas.
“Ninguém vai discutir a direção”, afirmou Liam Broza, fundador do LightScope, um projeto de dados de código aberto. “Ele está do lado correto da história. Mas o que ele está fazendo vai funcionar realmente?”
Outros dizem que a tecnologia Solid-Inrupt é apenas parte da resposta ao problema. “Há vários trabalhos fora do projeto de Tim Berners-Lee que serão vitais para essa visão”, afirmou Kaliya Young, copresidente da Internet Identity Workshop, cujos membros têm como foco a identidade digital.
Berners-Lee afirmou que sua equipe não está inventando um sistema de identidade próprio e que qualquer coisa que funcione poderia ser plugada à sua tecnologia.
A Inrupt enfrenta uma série de dificuldades técnicas, mas nenhuma delas “tão difíceis quanto chegar à Lua”, afirmou Bruce Schneier, um famoso especialista em segurança da informática e privacidade que se juntou à Inrupt como diretor de arquitetura de segurança.
E Schneier é um otimista. “Essa tecnologia poderia desencadear uma quantidade enorme de inovações”, se tornando potencialmente uma nova plataforma, como ocorreu com o iPhone entre os aplicativos de smartphone, afirmou ele.
“Acho que há uma boa chance de que isso transforme a maneira como a internet funciona”, afirmou ele. “É estranho, mas Tim já fez isso antes.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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