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Plataforma de streaming MyCujoo mantém futebol raiz vivo na pandemia

Criado por portugueses, serviço ajuda times pequenos a transmitir jogos e se manter perto de torcedores mesmo com estádios fechados

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Foto do author Bruno Romani
Pedro Presa, torcedor do Boavista de Portugal, criouMyCujoo após não ter como ver jogos do time na terceira divisão portuguesa Foto: MyCujoo

"Tô chateado, mas tô acostumado", desabafou ao Estadão o advogado Fabrício Chahoud, de 28 anos. Torcedor da Francana – a principal agremiação de Franca (SP) –, ele tinha acabado de ver seu time ser eliminado da quarta divisão do Campeonato Paulista. Em outros tempos, a queda só poderia ter sido vista no estádio ou contada pelas ondas de rádio. Mas em 2020, Fabrício testemunhou a trajetória da Veterana (o apelido carinhoso da equipe) no certame em transmissões em vídeo pela internet, algo pouco comum para clubes atolados nas últimas divisões do futebol profissional. O feito se deve a uma startup portuguesa, o MyCujoo

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A empresa é dona de uma plataforma que permite que qualquer time do mundo transmita suas partidas pela internet, incluindo equipes amadoras. Com grande público no País, a lusitana fundada em 2014 se tornou uma espécie de guardiã do ‘futebol raiz’ durante a pandemia. Graças às transmissões, ela permitiu que os times pequenos, muitas vezes lidando com limitações técnicas, financeiras e estruturas, conseguissem estar perto do torcedor mesmo que este estivesse longe das arquibancadas. 

“Em outubro, tivemos 5,2 milhões de usuários únicos. Só o Brasil respondeu por 70% disso”, afirma o português Pedro Presa, um dos fundadores da startup, que viveu uma montanha russa durante a pandemia. No início do ano, com a paralisação global dos esportes, os acessos à rede caíram - só os campeonatos da Bielorússia e do Tadjiquistão tinham bola rolando. Mas quando os jogos voltaram aos estádios, sem torcida, houve uma explosão de acessos. Hoje, o MyCujoo transmite as Séries C e D do Brasileirão, a terceira e a quarta divisões do Campeonato Paulista, além de torneios de base e de futebol feminino. 

Feijão com arroz

O dia 10 de julho de 2016 é possivelmente o mais importante na história do futebol português. Foi quando a equipe liderada por Cristiano Ronaldo bateu a França e se sagrou campeã da Eurocopa – o maior troféu do ludopédio lusitano. Para Presa, porém, o jogo mais importante daquele dia aconteceu em Murici, Alagoas. Ali, o time que leva o nome da cidade empatou em 2 a 2 com o Fluminense de Feira de Santana (BA), pela Série D do Brasileirão. Foi também a primeira transmissão do MyCujoo no Brasil. 

“Ali eu percebi a importância do futebol local pro brasileiro. No estádio, ninguém queria saber da Eurocopa” diz. Torcedor do Boavista, segunda força na cidade do Porto, em Portugal, Presa já sentiu na pele o que muitos espectadores do MyCujoo também sentem. Na época da criação da startup, ele queria ver os jogos de seu time, mas não havia plataformas transmitindo – na época, a agremiação estava na terceira divisão portuguesa. “Criei o MyCujoo com o sonho de democratizar acesso ao futebol, facilitando a produção e distribuição de partidas por parte dos clubes”, diz ele. 

Basta entrar na plataforma do MyCujoo para perceber que ele foi pensado para qualquer um transmitir uma partida de futebol – e não apenas uma live, por exemplo. No site, as equipes podem criar perfis e eventos de transmissão. A grande sacada está no software: é possível não só transmitir a partida de um celular, mas também acrescentar gráficos na tela, como o placar da partida. 

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Ainda durante a transmissão da peleja, é possível fazer marcações para eventos importantes, como gols, melhores momentos e cartões amarelos. A versão mais simples do sistema, via aplicativo para celular, é gratuita, mas quem precisar de recursos avançados deve pagar uma assinatura para o MyCujoo. Nesse segundo caso, é possível usar câmeras convencionais e centralizar toda a operação em um só notebook, por exemplo, simplificando a vida de quem não dispõe de uma ilha de edição em tempo real. 

A simplicidade ajuda os times pequenos. Com uma carreira de 34 anos e locutor das partidas em casa do São José Esporte Clube, Moacir Mainardi faz parte de uma equipe enxuta na internet. Além dele, comparecem ao estádio Martins Pereira, no Vale do Paraíba, somente um comentarista, um cinegrafista e um editor de imagens, que opera o software do MyCujoo no notebook. Os quatro são responsáveis pela transmissão das partidas da Águia na quarta divisão paulista. 

Moacir Mainardi, durante transmissão de jogo do São José no Estádio Martins Pereira Foto: Moacir Mainardi

“Não tenho nem monitor de imagem, não sei o que as pessoas veem em casa. Preciso ficar atento e usar minha experiência no rádio pra não perder lances importantes. Não tem replay!”, diz ele. Com cerca de mil espectadores, as transmissões lideradas por Mainardi são parte de parcerias que a Federação Paulista faz com canais regionais para que todos os times tenham conteúdo na FPF TV, o projeto de canal online da federação que usa o MyCujoo como plataforma. 

Marcação homem a homem

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Para especialistas, a plataforma pode ajudar os times menores a ganharem audiência, mas também dinheiro. “O futebol é um esporte visual e o MyCujoo abre uma janela de construção de marca. Não é só a conexão com o fã, mas também oportunidades de gerar receita que antes não existiam”, explica Ivan Martinho, professor da ESPM e especialista em marketing esportivo. “Com o alcance da plataforma e a frequência de jogos é possível construir um calendário de eventos e promoções para o torcedor”, diz. 

Outra vantagem da plataforma é permitir micropagamentos: em vez de pagar por um pacotão de jogos do seu time, como acontece hoje na TV a cabo com times grandes, o torcedor cuja equipe do coração está no MyCujoo pode pagar pequenos valores para ver uma única partida, por exemplo. Em tempos de pandemia, é um bom substituto para o ingresso no estádio, além de poder ser visto à distância. 

O corretor de imóveis Narciso Della Rosa Neto, de 30 anos, por exemplo, paga R$ 5 por jogo para acompanhar o São Bento de Sorocaba na Série C do Brasileirão. Um preço bem razoável, diz ele – e bem menos extravagante que as loucuras que o corretor já fez pelo time do coração, como ter transformado o próprio quarto de adolescente num santuário do ‘Bentão’ ou ter invadido o campo no histórico acesso da equipe à série A1 do Paulistão em 2005. 

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Nem todas as partidas no MyCujoo, porém, são pagas – a maior parte delas, na verdade, é gratuita. A previsão de Presa e de analistas, porém, é que elas passem a ser cobradas por valores baixos. É uma novidade no mercado, mas que pode virar tendência, aponta Luís Bonilauri, líder da indústria de mídia e entretenimento da Accenture para a América Latina. “No Ocidente, estamos acostumados a ver conteúdo por assinatura ou com propagandas, mas na China, o modelo de micropagamentos é difundido. É algo que vai se popularizar e fomentar plataformas de nicho”, diz o especialista. 

MyCujoo também ajuda o futebol do interior a viralizar: partida entre Velo Clube e Comercial, por exemplo, virou meme com campo encharcado Foto: Bruno Romani/Estadão

O caminho, porém,da startup ainda pode melhorar nesse quesito. Os mais atentos se lembrarão que a plataforma já havia se arriscado entre os clubes de massa, quando o Flamengo tentou transmitir e cobrar sua partida contra o Volta Redonda pela semifinal da Taça Rio, em julho. Deu errado. O sistema de pagamento falhou e milhares de torcedores ficaram sem acesso à transmissão. O problema forçou o clube já perto do horário da partidaa liberar gratuitamente o sinal no YouTube.

Em um cenário livre de falhas, a ideia dá à plataforma potencial de geração de faturamento mais recorrente e diversificado. Em vez de apostar num jogo único, com megaeventos e superpúblico, como fazem os canais por assinatura, o MyCujoo fatura um pouquinho com cada partida pequena transmitida em sua plataforma – a empresa, porém, não abre a divisão das receitas. 

Nova divisão

Tal como um jogador promissor das categorias de base, o MyCujoo também chamou a atenção no mundo da bola. E acabou fazendo parte de uma transação milionária: no início de novembro, a plataforma foi adquirida pela Eleven Sports, grupo europeu especializado em transmissões esportivas. De propriedade de Andrea Radrizzani, sócio majoritário do clube inglês Leeds United, a Eleven está acostumada a exibir alguns dos maiores torneios do mundo, como a Liga dos Campeões e a Premiere League inglesa. 

“Em agosto, lançamos uma estratégia de conteúdo na internet. Queremos ser donos da nossa tecnologia de streaming, democratizando conteúdos e participando de comunidades amadoras e de massa, como ciclismo e corridas”, diz o português Luís Vicente, presidente executivo da Eleven. Veterano do mercado, tendo passado por clubes como Real Madrid e Manchester City, ele diz que a tecnologia do MyCujoo será incorporada pela Eleven. O modelo do futebol raiz, em breve, também será turbinado para incluir outros esportes – afinal, o que vale para o futebol também vale para diversas modalidades. 

Luís Vicente, da Eleven Sports: nova era Foto: Eleven Sports

Nesse processo, porém, a marca MyCujoo vai desaparecer. Em seu lugar, surgirão três marcas diferentes – todas usando a tecnologia da startup portuguesa. O Eleven X será voltado ao futebol e outros esportes, enquanto o Eleven Women será dedicado a esportes femininos. O terceiro pilar será o Eleven eSports, focado em campeonatos de games que emulam esportes reais, como Fifa, PES e NBA 2K. 

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“Queremos, acima de tudo, muita audiência e os dados dessa audiência”, explica o executivo. “De certa forma, seremos uma espécie de Amazon ‘ao contrário’. A Amazon começou como um market place, virou uma companhia de dados e agora é uma companhia de mídia. Somos uma empresa de mídia que quer virar uma empresa de dados e depois chegar a um marketplace”, diz. 

E assim, tal como um lançamento ambicioso que cruza o campo em busca de um contra-ataque, o futebol raiz também se insere na lógica global de dados e consumo do universo da tecnologia. Por essa posição na tabela, São José, Francana, São Bento e outros times alternativos não esperavam. Como diria Zagallo, “aí sim, fomos surpreendidos novamente”. 

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