Não é difícil imaginar que, em um primeiro momento, questões envolvendo o mundo da tecnologia não sejam prioridade do democrata Joe Biden, que tomará posse em 20 de janeiro - o programa eleitoral dele tratava pouco do tema. Combate ao coronavírus, recuperação econômica, crise climática, tensões raciais e reunificação dos EUA devem ocupar as primeiras ações do 46° presidente americano. Isso, porém, não significa que ele não tenha pela frente discussões importantes altamente ligadas à tecnologia. Regulação das gigantes do setor, moderação de conteúdo, proteção de dados e inteligência artificial são alguns dos assuntos no horizonte do democrata, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.
O final de 2020 deixou claro que o próximo presidente americano será obrigado a discutir o tamanho e a força das ‘Big Techs’ - Amazon, Apple, Facebook e Google não são apenas os principais nomes da tecnologia, mas também as companhias mais valiosas do mundo. Entre outubro e dezembro, Google e Facebook viraram alvo de diferentes ações por parte do Departamento de Justiça (DoJ), Comissão Federal do Comércio (FTC) e outras dezenas de advogados-gerais estaduais. Em comum, os processos miram supostas práticas anti-comerciais das gigantes e, em alguns casos, propõem o seu desmembramento.
Em outros tempos, a chegada de um democrata à Casa Branca seria boa notícia para as gigantes. Historicamente, o partido mantém relações mais próximas com o Vale do Silício do que o partido republicano. Os democratas estavam no poder na implementação e expansão da internet comercial (Bill Clinton) e na consolidação das gigantes da rede (Barack Obama). O fato de a nova vice-presidente, Kamala Harris, ter sua base eleitoral na região de São Francisco, ninho das Big Techs,poderia ser a indicação final de tranquilidade para essas empresas pelos próximos quatro anos.
Mas não é bem assim. “Essa relação pode ter mudado. É difícil dizer o quanto o novo governo será instintivamente amistoso com o setor de tecnologia", afirma Jim Dempsey, diretor executivo do centro de direito e tecnologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. “Existem forças puxando no sentindo contrário. Biden terá que lidar com a ala progressiva do partido democrata, que atualmente desconfia do poder das gigantes”.
O próprio presidente já deu declarações que indicam uma postura mais dura. “Nunca fui um fã de Zuckerberg. Penso que deveríamos nos preocupar não apenas com a concentração de poder, mas também com a falta de privacidade”, disse ele em uma entrevista ao jornal New York Times em janeiro de 2020.
Embora a regulação passe também pelo congresso, Biden poderá ter um papel importante. Ele é o responsável por escolher o presidente do FTC - a escolha é feita entre os cinco conselheiros da agência, que atualmente tem três republicanos e dois democratas. Uma das apostas para a escolha é de Rohit Chopra, conselheiro que se demonstrou decepcionado com a multa de US$ 5 bilhões ao Facebook pelo escândalo Cambridge Analytica. Apesar de ser a maior multa da história a uma empresa de tecnologia, ele considerou a punição pequena.
Além da escolha do presidente da agência, Biden poderá escolher os novos membros a partir de 2023 - ou antes, caso um dos membros decida deixar o FTC.
Apesar desse novo momento entre democratas e o Vale do Silício, é mais difícil imaginar que desmembramentos das gigantes aconteçam nos próximos quatro anos. “As leis antitruste nos EUA foram, no mínimo, anêmicas nas últimas duas décadas”, diz Jeff Gary, diretor de políticas do Instituto de Lei e Políticas para Tecnologia da Universidade de Georgetown. “Não está claro que as cortes federais estejam preparadas para dizer que as condutas de Google e Facebook são tão escandalosas que precisam ser quebradas”.
Privacidade e liberdade de expressão
Uma das questões que deve ganhar holofotes é a proteção de dados - o tema não está ligado apenas ao poder das gigantes de tecnologia, mas ao funcionamento da indústria de modo geral. Nos últimos anos, os EUA viram a Europa e até o Brasil implementarem legislações específicas dessa natureza.
“Acredito que Biden vai retomar o debate onde Obama deixou”, diz Dempsey. Ele lembra que em 2012 a administração Obama apresentou um projeto de lei de privacidade, que posteriormente naufragou no congresso. Além de ser uma indicação do que pensa Biden, Kamala Harris, quando foi advogada-geral da Califórnia, apresentou projetos sobre o tema.
Estaria os EUA pavimentando o terreno para uma lei geral como na Europa ou no Brasil? Possivelmente não. “A proteção de dados nos EUA é uma discussão setorial, como proteção de crianças e de consumidores em situações específicas. Talvez, uma nova lei federal de dados seja uma junção de alguns desses setores”, explica Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio).
É uma discussão que deverá ser liderada inclusive pelas empresas - nesse caso, porém, as intenções não são das mais nobres. “As empresas querem liderar a discussão para evitar leis mais duras, como algumas leis estaduais”, afirma Dempsey. Ele lembra que leis de proteção à privacidade até aqui tiveram caráter estadual e municipal, o que, em alguns casos, resultou em leis restritivas para as empresas - a Califórnia seria um exemplo. A ideia seria evitar que a legislação do maior estado do país influenciasse a discussão federal.
No que depender das empresas, não vai faltar dinheiro para impulsionar as conversas. No trimestre mais recente, Amazon e Facebook aumentaram o gasto com lobby, segundo a consultoria DataTrek Research - a atividade é legalizada nos EUA. Em 2019, o Facebook, por exemplo, já havia registrado o seu recorde com lobby: US$ 17 milhões.
Além de proteção à privacidade, é possível que as empresas enfrentem uma discussão sobre liberdade de expressão. Tanto democratas quanto republicanos colocaram em sua mira a Seção 230 - parte da legislação de internet no país que tira a responsabilização de plataformas por conteúdos postados por terceiros, e que também imuniza essas plataformas de violação de liberdade de expressão quando decidem remover algum conteúdo.
O consenso bipartidário parte de pontos de vista bastante diferentes. Para os democratas, a Seção 230 permite que conteúdos mentirosos se espalhem nas redes sociais - Biden já criticou a legislação. Para os republicanos, a Seção favorece um suposto viés contra conteúdos conservadores por parte das plataformas - Trump constantemente critica a legislação. “Existe hoje um grande debate sobre o quanto essas plataformas prejudicam a democracia dos EUA, e essa conversa continuará pelos próximos anos”, diz Mauricio Moura, pesquisador da Universidade George Washington e fundador da consultoria Ideia Big Data.
Inteligência artificial
Mesmo "verde" diante dos outros assuntos, segundo os especialistas, a inteligência artificial (IA) deve aparecer no horizonte de Biden - ao menos alguns de seus aspectos. Um deles está relacionado ao uso responsável e justo de algoritmos.
“Entidades, que vão do setor público ao privado, estão usando algoritmos para tomar decisões importantes todos os dias - de quem recebe benefícios públicos a quem vira alvo da polícia. Apesar das implicações enormes, não há uma agência com a tarefa de regular o uso de algoritmos nos EUA”, diz Gary. As discussões crescem à medida que novos casos revelam ações discriminatórias por parte dos algoritmos.
Outro aspecto da tecnologia é estratégico. A China tem um plano para se tornar a principal potência em IA até 2030. Biden terá que trabalhar para que tenha os pesquisadores e os melhores bancos de dados à sua disposição - alguns especialistas já afirmam que os EUA já estão atrás na corrida com o rival.
“Se o governo dos EUA quer disputar em IA, precisa começar agora. Caso contrário,quantas vezes o país vai conseguir replicar o caso do TikTok?”, pergunta Souza.
Mais importante ainda: apesar das prioridades de curto prazo, o presidente dos EUA terá que perceber a importância do setor tecnológico. “Tecnologia era um assunto setorial, mas isso mudou. Agora, é um assunto de todos. Tem centralidade em nossas vidas”, diz ele.
Os outros desafios do presidente
5G: A disputa comercial com a China, que tem o 5G entre seus pilares, deve continuar – talvez, menos estridente. Os especialistas, porém, duvidam que o novo presidente permitirá a entrada chinesa na infraestrutura da próxima geração de conexões móveis.
Cibersegurança: Biden terá de ampliar a atuação da proteção doméstica em termos de cibersegurança. Tanto equipamentos públicos quanto privados se tornaram alvos constantes de ações, incluindo algumas coordenadas por nações rivais.
Imigração: As políticas mais duras de Trump atrapalharam as contratações do setor tecnológico, que espera mudança ao menos em relação aos profissionais estrangeiros que deseja contratar. O dilema é que Biden também lida com o desemprego doméstico.
Taxação: Muitas empresas de tecnologia americanas pagam menos impostos ao determinar suas bases fiscais em outros países - a Irlanda é um desses paraísos tributários. O governo Biden precisará avaliar como morder um pouco mais desses valores.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.