Desde o começo da pandemia, Milena Neves, 45, mantém uma jornada dupla no mundo digital. Além do trabalho em home office, como assistente de comunicação na Universidade de São Paulo, ela fica ligada nas aulas remotas do filho Vinícius, 8. Após o expediente, o celular continua como protagonista, e ela passa horas no Instagram e no Facebook, olhando o feed de seus amigos. Resultado: quando é hora de dormir, o sono não vem. O impacto da tecnologia na qualidade do sono já era objeto de estudo antes da pandemia. Agora, porém, muito mais gente parece ser vítima das telas de smartphones e do ruído das redes sociais.
Os problemas de sono na pandemia potencializados pela tecnologia foram encontrados no estudo conduzido pelo professor Sergio Brasil Tufik, médico e pesquisador do Instituto do Sono de São Paulo. A pesquisa revelou que, durante o último ano, o uso de tecnologia fez com que cerca de 64% das pessoas relatassem uma demora de 30 minutos ou mais para adormecer, se comparado com sua rotina antes da pandemia — no total, 81% dos brasileiros sentem alguma dificuldade para dormir desde que a crise sanitária começou.
Além disso, 55,1% dos brasileiros relataram uma piora na qualidade do sono no último ano e mais de 60% dos entrevistados na pesquisa afirmam que o uso de tecnologias como celular, redes sociais e computadores tem colaborado para esse índice.
“Eu vejo que a nossa sociedade vem caminhando para a privação de sono, muito por conta dos dispositivos eletrônicos. No passado, com o pôr do sol, as pessoas iam dormir. Hoje, com smartphones conectados o tempo inteiro, raramente as pessoas conseguem dormir tanto quanto gostariam. A pandemia veio para intensificar esse processo”, explica Tufik em entrevista ao Estadão.
Na pandemia, o celular e a internet têm sido janelas de escape e de socialização para quem passa boa parte do dia confinado. “Faz mais ou menos uns seis meses que eu não durmo bem. Se não estou na frente do notebook, estou respondendo e-mail pelo celular. Tenho usado muito mais o celular na pandemia, uso até a hora de dormir. Eu acho que olhar o celular à noite não me faz bem, mas como fico com insônia, fico nele até adormecer”, conta Milena.
A falta de atividade fora de casa também serve como combustível para inúmeras consultas junto ao smartphone: — faça um teste: nas configurações dos celulares, em “tempo de tela”, as empresas fornecem quantas vezes você pegou no celular por dia. São boas as chances dos seus números serem altos também.
O efeito é imediato no organismo: o vício em telas atua na diminuição da melatonina, um dos hormônios responsáveis pela manutenção do sono e pela sensação de descanso— a luz é um inibidor da melatonina, pois ela é produzida quando nosso organismo está no escuro.
“Mesmo com os aparelhos que hoje tem um bloqueio de luz azul, a iluminação ainda diz para o nosso cérebro que é dia e nosso organismo não se prepara para dormir. Na pandemia, as pessoas já vivem uma condição de alerta constante, então o uso prolongado desses aparelhos à noite induz a queda ou até mesmo a inibição completa da produção de melatonina”, afirma Luiz Gustavo de Almeida Chuffa, pesquisador do Instituto de Biociências da Unesp.
Infelizmente, para muitas pessoas, o uso excessivo da tecnologia não é uma escolha. Pedro Paradela, 22, é estudante de matemática e percebeu que o seu sono piorou muito depois que começou a ter aulas online. Com o ensino remoto, chega a ir deitar por volta das 2 horas da manhã e frequentemente tem sintomas de cansaço durante o dia.
“Eu não uso o celular durante a aula para me concentrar, então acabo pegando ele antes de dormir. Às vezes abro as notificações para dar uma conferida ou até mesmo responder alguém, mas acabo me distraindo e passo mais tempo do que deveria”, afirma.
Insônia social
As redes sociais também desempenham um papel importante na piora do sono. Mais do que a luminosidade emitida pelos dispositivos, o mecanismo neurológico de “recompensa” por ver uma foto, por exemplo, ou por encontrar um produto desejado, estimula receptores de atenção, afirma Monica Andersen, diretora de ensino e pesquisa do Instituto do Sono. A química que acontece no cérebro deixa os usuários em estado de alerta. Na hora de dormir, o processo vira um vilão do travesseiro.
A pesquisadora conta ainda que existe um segundo fator relacionado a redes sociais que pesa contra o sono: a produção de cortisol. Esse hormônio, produzido em situações de estresse, aparece também quando você vê conteúdos que não são do seu agrado. Sejam notícias sobre a situação do País, fotos de amigos que estão viajando (enquanto você fica em casa), ou saborosas fofocas da firma — tudo isso ajuda o cérebro a mandar o sono embora.
“As redes sociais promovem uma gratificação ao cérebro quando você busca algo no feed e encontra. Mas quando a resposta não era a que você queria, isso vira um dilema. A gente tem uma situação comparativa nessas plataformas, entre a imagem do outro e a nossa. Isso gera uma expectativa não necessariamente prazerosa. A comparação aumenta o cortisol, o que causa um estresse associado às redes sociais, promovendo um hiperalerta”, explica Monica.
Higiene do sono
Segundo Chuffa, o melhor método para voltar a ter noites saudáveis de sono — sem o uso de medicamentos — é a chamada higiene do sono. Ela só funciona por meio de muito esforço e busca regular e tirar da rotina hábitos que prejudicam o organismo na diferenciação do dia e da noite.
Se ausentar das redes sociais algumas horas antes de dormir pode ajudar a diminuir o nível de cortisol, além de poupar a exposição da luz azul. Fazer exercícios físicos durante o dia também é uma das recomendações, já que a produção da serotonina, conhecida como o hormônio do prazer, está associada também aos níveis de melatonina no cérebro.
“Estamos obrigados a trabalhar com essa exposição. Porém, o fato é que, por mais que exista proteção de cores nas telas, nós vamos ter prejuízo se avançarmos no tempo de uso dessas tecnologias. O ideal seria deixar todos os equipamentos no modo de bloqueio de luz azul e colocar um prazo para terminar as tarefas e descansar. É muito difícil, mas não tem para onde correr".
*É estagiária sob supervisão do editor Bruno Romani
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.