Tentar antever o que nos guarda o futuro é inútil e petulante. O crescente ritmo das transformações que a tecnologia nos impõe levanta dúvidas sobre nossa capacidade de adaptação. Diz-se que uma das características que diferenciou o humano de seus primos símios é a memória de longo termo que, associada à escrita, nos permitiu preservar um panorama de alguns milhares de anos. Mas até nisso a moderna tecnologia ativa pode interferir. Se delegarmos a ela a curadoria do passado humano, sabe-se lá com que viés ele nos será recontado… Plagiando a famosa frase atribuída a Pedro Malan, “no Brasil até o passado é incerto”, a inteligência artificial (IA) pode universalizar essa incerteza.
É indiscutível que estamos perdendo habilidades em troca de facilidades, mas esse escambo pode se revelar positivo se ganharmos novos e mais complexos talentos. Nessa dúvida é que mora o perigo… Sou do tempo em que, no primário, além de escrita e leitura, aprendíamos caligrafia num caderno pautado para isso. E havia o momento importante em que trocávamos o lápis pela caneta tinteiro, e podíamos mostrar aos menores nossos dedos orgulhosamente sujos de tinta… Hoje a escrita cursiva parece quase abandonada: uma habilidade, talvez menor, perdida... A leitura pode ser a próxima “bola da vez”, dado que mais e mais se usa “ouvir” um texto. O som de uma palavra substituirá sua forma escrita? Mais um talento ameaçado mas, claro, esperamos que sua substituição seja com vantagens…
Outra facilidade é a IA, que hoje não apenas “entende” como produz texto muito articulado. Também pode gerar imagens, para nosso senso estético muito belas. Como exemplo, a “modelo” Milla Sofia, criada por IA e que tem até perfil nas redes sociais, acumula milhares de admiradores… Seria o caso de revisitarmos o conceito de “verdade”.
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Lembrou-me o final do célebre poema de J. Keats, “Ode a uma Urna Grega”, que crava: “Beleza é verdade, verdade é beleza; isso é tudo que no mundo sabemos, e tudo que precisamos saber”. Milla Sofia é “verdade”? Talvez sim, no sentimento de seus seguidores… No campo da escrita cada vez surpreendem mais os resultados que os LLM geram. Há um artigo na revista Wired, de setembro de 2023, em que uma escritora, Vauhini Vara, valeu-se da IA e avalia o resultado. Mesmo sem tomar uma clara posição a favor ou contra, ela reconhece que a IA pode ter gerado as melhores frases de seu ensaio Ghosts, que viralizou. Parece difícil explicar o que vemos apenas como mecanismos de juntar palavras e montar frases. “Há algo no ar além dos aviões de carreira”, diria o Barão de Itararé.
Não tenho estatura para comentar obras complexas como Finnegans Wake, de Joyce, mas não me furtei a pedir aos LLM comentários e um resumo do livro. Sobre isso, o Bard escreveu um poema que começa assim: “No rio Liffey, a noite cai,/ E a cidade de Dublin adormece,/ Mas no sonho de Shaun/ O mundo se transforma em um poema…”. E pra coroar, o mesmo Bard pontuou: “Resumir Finnegans Wake de J. Joyce é como tentar pegar um punhado de névoa”. É de cair o queixo!
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