Graças ao papa Gregório XIII, com a reforma do calendário em 1582, estamos terminando 2024, um ano bissexto, também resultante do ajuste. Tudo isso cerca de um século depois do que consideramos o fim da Idade Média, com a queda de Constantinopla em 1453.
Nos mapas medievais, quando se saía da região conhecida, havia um alerta aos navegantes sob a forma de desenhos de dragões e monstros marinhos, às vezes acompanhado da frase “Hic sunt dracones”. “Aqui há dragões! Se quer ir além do já mapeado, siga por sua conta e risco”. Mais que um alerta, talvez fosse um desafio: um convite aos temerários que ousassem enfrentar o desconhecido. Sabemos que muito do que desfrutamos hoje foi por conta da audácia dos que aceitaram ver-se frente a frente com os tais dragões.
Um dos “dragões tecnológicos” mais óbvios de 2024 foi a inteligência artificial (IA), que passou de ferramenta a pleno ambiente. Não apenas ela provou seu controle amplo da linguagem, português incluído, como manteve com os usuários uma interlocução bastante crível, que aparenta razoabilidade e sensatez. É fácil constatar o grau de surpresa de um neófito ao conversar com versões avançadas de LLMs, que não apenas respondem às suas perguntas, mas passam a ser auxiliares importantes (e eventualmente perigosos…) na tomada de decisões. O aprofundamento dessa interação poderá fazer com que, em curto tempo, tenhamos até dificuldade em definir “humano”, ou “consciência”. O velho crivo que Alan Turing propôs em 1949, com o seu teste, é hoje claramente insuficiente para diferençar o humano da máquina.
Em campos como apoio a diagnósticos em medicina, consultas à jurisprudência, aumento da eficácia de processos, a IA, através do aprendizado de máquina e do processamento de imagem e texto, muitas vezes supera os resultados hoje obteníveis por humanos, especialmente quanto se trata de digerir imensas quantidades de dados.
Outra analogia possível é com o mito da Caixa de Pandora. A tecnologia, com IA e novas ferramentas, abriu a tal caixa. Dentro dela pode haver maravilhas, cura de doenças, acesso ainda mais amplo a conhecimento, otimização de recursos e, até, criação sintética de imagens e vídeos. Mas saem também estorvos, como o aumento da desinformação usando IA, a criação sintética de “realidades”, a vigilância ubíqua sob o controle dos poucos que dominam o ferramental, o aumento de desigualdade que qualquer tecnologia usualmente produz, os novos dilemas morais e éticos. Como no mito, restará sempre oculta, no fundo da caixa, a “esperança” à qual nos aferraremos. Afinal, uma vez aberta, a caixa não se fechará novamente.
“Hic sunt dracones” assim, além de um aviso, é um chamado à exploração responsável e ética dos artefatos que estamos criando, na esperança de usá-los para curar e progredir, sem nos perdermos dos valores humanos. Domemos os dragões que surgirem, aprendamos com eles, e não seremos vítimas de seu hálito mefítico.
Essa navegação perigosa seguirá cada vez mais acelerada em 2025. Que seja um ano propício à humanidade e nos traga boas surpresas! Até o ano que vem… e com os 150 anos do Estadão!
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