Em Quioto, Japão, começou o Fórum de Governança da Internet de 2023 (IGF, na sigla em inglês), evento que, por excelência, reúne a comunidade multissetorial que debate os rumos da rede. Estamos num complicado ponto de inflexão sob vários aspectos.
Há quase 30 anos, em outubro de 1996, o presidente dos EUA, Bill Clinton, assinava atualização da E-FOIA: “Eletronic Freedom of Information Act Amendments”. O contexto pode ser ancorado numa anterior proposta de legislação para combater a pornografia na internet: o CDA (“Communications Decency Act”), que havia sido assinada pelo mesmo Clinton em junho de 1995.
Houve imediata reação da “comunidade internet”, contra o que se considerou uma tentativa de censura à internet.
Neste clima, John Perry Barlow, que, em 1990, fundara com Mitch Kapor e John Gilmore a Eletronic Frontier Foundation (EFF), publicou, em fevereiro de 1996, a famosa “Declaração de Independência do Ciberespaço”. Barlow instava os governos do mundo a que “tirassem suas mãos do novo mundo de idéias”, a internet, permitindo a todos seus integrantes total liberdade de expressão, “independentemente de quão estranha ela possa parecer”.
A pressão da “comunidade internet” surtiu efeito, e o CDA perdeu bastante do escopo original. Um trecho que restou, a seção 230, garantia a imunidade aos “provedores de meios de acesso e comunicação” em relação ao conteúdo que seus usuários gerassem e, ao mesmo tempo, lhes dava liberdade de agir dentro de seus “códigos de conduta”.
Claro que muita coisa mudou desde então. Com as plataformas sociais, muitos dos que antes de classificariam como “intermediários” não caberiam mais nesse tipo de proteção. Mas o que também se sente é uma certa apatia e uma ausência da pressão que a tal “comunidade internet” sempre exerceu, visando a preservar os fundamentos originais da rede.
Somos filhos de uma época de ódio e angústia não porque há gente ruim rondando uma sociedade indefesa, mas porque ganhamos liberdade e um poder inédito para revelar quem somos
Fernando Schuler, pesquisador brasileiro
A essa visão idílica da internet primeva podemos contrapor o que Umberto Eco considerava como os problemas e as deformações que a rede trazia: num mundo onde todos falam, caberia a nós a tarefa de triar a qualidade, dentro da infinidade de dados. Delegar essa tarefa a outrem traz sempre o risco de perdermos muito de nossa autonomia, em nome de eventual “segurança”.
Ainda na linha de Eco, em artigo recente, o pesquisador brasileiro Fernando Schuler adverte: “Somos filhos de uma época de ódio e angústia não porque há gente ruim rondando uma sociedade indefesa, mas porque ganhamos liberdade e um poder inédito para revelar quem somos”.
Afinal, Vint Cerf, que acaba de fazer instigantes comentários na abertura do IGF, já nos tinha alertado de que “a internet é o espelho da sociedade”.
Uma lei recém-aprovada na Inglaterra propõe-se a nos livrar “das coisas ruins que há na rede”. Na definição de “ruim” é que mora o perigo, e efeitos colaterais dessa lei são bem preocupantes.
Na Antígona, de Sófocles, peça escrita há quase 2,5 mil anos, uma frase que ainda ressoa muito atual, e alerta para os riscos de confundirmos o bem e o mal: “Aos que os deuses querem levar à destruição, o mal aparenta ser o bem”…
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