As redes sociais têm sido espaço privilegiado de expressão de sentimentos em momentos de tragédia ou comoção, pessoal ou pública. Os seus usos incorporam-se aos hábitos; já é possível prever que a morte de alguém famoso vai repercutir no nosso feed do Facebook ou Twitter, com homenagens, críticas póstumas, reflexões. Em geral, o WhatsApp costuma ser o lugar onde conteúdos mais controversos são veiculados: piadas, memes, e, quando o mau gosto atinge seu ápice, imagens e vídeos da própria tragédia.
Na semana passada, mais uma no meio do fluxo ininterrupto de de nascimento e morte das polêmicas de Internet, uma ficou um pouco mais. Foi o caso do vazamento das imagens da autópsia e embalsamento do cantor sertanejo Cristiano Araújo e de sua namorada Allana Moraes, de apenas 19 anos. Ambos faleceram em um acidente de carro na semana passada, e tiveram esse registro veiculado massivamente pelas redes.
Não é preciso ser a pessoa mais sensível do mundo para entender o sofrimento que a viralização de imagens como essa causa nas famílias e em pessoas próximas às vítimas. Desafia também a nossa compreensão que conteúdos tão mórbidos e desrespeitosos ganhem tração tão facilmente na rede.
A empresa que gerenciava a carreira de Cristiano, a CA Produções Artísticas, teve a iniciativa de tentar cortar a cadeia de viralização, derrubando ou bloqueando acesso às imagens. Nessa tentativa, entrou com uma ação na Justiça do Estado de Goiás, contra o Google e o Facebook. Observando que as plataformas controladas por essas empresas estavam repletas de cópias das imagens, a empresa entrou com um pedido de liminar para "a suspensão imediata da veiculação de todos os arquivos com conteúdo relacionado a imagem do cantor Cristiano de Melo Araújo após o seu óbito, nos procedimentos de autópsia e preparação de corpo, bem como imagens e vídeos feitos no local do acidente expondo a imagem dos corpos, sob pena de multa diária".
Sensibilizado, o juiz do caso não teve dúvidas ao conceder a liminar e determinar que as empresas tomassem "todas as providências cabíveis a fim de fazer cessar, imediatamente, a disseminação de tais imagens degradantes na rede mundial de computadores".
Na ansiedade de proteger as famílias do casal, o juiz sequer citou o Marco Civil da Internet, lei que claramente se aplica ao caso. Em trecho da decisão, o magistrado afirmou, sem explicar muito, que os provedores de Internet seriam solidariamente responsáveis pelo dano causado às famílias. Não é o que diz o Marco Civil. Segundo essa lei, a responsabilidade das plataformas pelo dano causado por conteúdo que é postado pelos usuários só existe caso as plataformas descumpram ordem judicial para retirar a postagem - e não a obedeçam. A regra existe para que plataformas como o YouTube não sejam incentivadas a indisponibilizar conteúdos postados por usuários a seu bel-prazer.
A partir do momento que a decisão do juiz determinou a remoção do conteúdo, aí, sim, de acordo com o Marco Civil, a plataforma torna-se responsável também, se não tornar as providências para cumprir a ordem e tornar o conteúdo indisponível - mas não antes disso, como o juiz dá a entender. Mas não foi só nesse ponto que o Marco Civil foi ignorado: ele determina que, para não ser nula, a ordem judicial deve conter "identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material". Isso quer dizer, por exemplo, indicar os URLs (Uniform Resource Locators) das imagens, seus endereços na rede. É por meio de localizadores como esses, inequívocos, que Googles, Facebooks ou quaisquer outros provedores podem saber que aquele conteúdo está de fato sob seu controle e de qual conteúdo se está falando.
Esse problema, que parece tão pequeno técnico, está imbuído de discussões nada fáceis. Por um lado, a exigência de indicação de todas as URLs para remoção de um conteúdo indesejado pode parecer excessiva, do lado de quem tem um interesse legítimo nisso: imagens e vídeos vão sendo reproduzidos e postados em URLs distintas - enquanto o autor da ação espera o resultado, outras já surgiram. De outro lado, uma ordem que não indica a localização do conteúdo a ser removido com precisão pode fazer com que materiais que não são ilegais sejam removidos das plataformas. Ou, ainda, a generalização de ordens como essa poderia levar as plataformas ao exercício de um controle editorial absoluto sobre tudo que se posta na rede - o que é evidentemente indesejável.
Um outro problema da decisão genérica do juiz nesse caso foi a ordem para que Google e Facebook tomem providências para "fazer cessar a disseminação de imagens da rede mundial computadores". Elas são grandes e importantes, mas não têm poder para fazer cessar a veiculação de algo na Internet como um todo - ainda bem!
Não é simples viver num mundo com as vantagens e desvantagens de qualquer conteúdo poder chegar ao alcance de muitos, e sobretudo não estamos ainda completamente habituados a essa liberdade. Mas se algumas situações são de fato estarrecedoras, parece ser função do Judiciário a análise menos apaixonada dos fatos. É dele que esperamos uma visão conjuntural sobre a consequência das decisões e a consideração às leis que já existem (que foram fruto de debate e deliberação sobre a Internet que queremos ter). Essas discussões não são inócuas: as regras que a Justiça estabelece para casos como esse determinam o grau de liberdade de expressão que teremos também para outros - para fortalecer nossa capacidade de diálogo e nossas qualidades morais. De qualquer perspectiva, é incômodo que pessoas tenham compartilhado as fotos de Cristiano e Allana. Da perspectiva dos demais direitos envolvidos, é incômodo que o Marco Civil tenha sido ignorado para que a questão se resolvesse.
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