BERLIM - Em meio a uma paisagem de edifícios baixos, um arranha-céu espelhado de 140 metros de altura, retangular como um Lego, está em fase final de construção em Friedrichshain-Kreuzberg, bairro na região central de Berlim. O prédio, batizado de EDGE East Side Berlin, deve ser entregue no último trimestre deste ano. Já no início de 2024, uma companhia deve começar a ocupar 28 dos 35 andares planejados: a Amazon. E a empresa virou não apenas alvo de protestos dos berlinenses como a obra passou a simbolizar os conflitos entre gigantes da tecnologia e comunidades locais - um tipo de disputa cada vez mais comum no mundo.
A companhia americana pretende reunir no edifício, batizado informalmente de “Amazon Tower”, todos os seus 3,4 mil funcionários em Berlim. Isso inclui trabalhadores das áreas de pesquisa, logística, produto e serviços, que incluem Alexa, Amazon Web Services (de nuvem) e Prime Video. Ao todo, são 36 mil empregados da Amazon na Alemanha, cuja sede fica em Munique, metrópole ao sul do país onde se concentram os principais escritórios das multinacionais.
A mudança foi anunciada em outubro de 2022, a três meses de o CEO global da Amazon, Andy Jassy, anunciar a demissão de 18 mil empregados em todo o mundo. Segundo declaração de porta-voz da Amazon ao Estadão, a ideia é que a Amazon Tower seja o espaço possível para a contratação de mais pessoas em Berlim, além de permitir a integração de diferentes equipes em um único espaço.
“Queremos criar mais postos em Berlim, ao mesmo tempo em que trabalhamos em um espaço onde possamos colaborar pessoalmente. Nossos funcionários desejam trabalhar em uma localização central (na cidade) e com boas conexões de transporte público. Neste contexto, o edifício em Friedrichshain-Kreuzberg oferece condições excelentes”, diz a Amazon à reportagem.
O EDGE East Side Berlin, como indica o próprio nome, está no que antes era Berlim Oriental, território da antiga União Soviética. Além disso, o prédio é próximo de um dos pontos turísticos mais famosos de Berlim: as ruínas do muro que dividia a cidade alemã e, hoje, se tornou um dos cartões postais da cidade com as artes em exibição.
Além disso, o edifício está em Friedrichshain e Kreuzberg, dois distritos separados pelo rio Spree e as duas principais regiões “alternativas” de Berlim. Nelas, artistas, universitários e imigrantes tradicionalmente vivem há décadas graças a aluguéis mais baixos em relação a outras partes da cidade cujos preços explodiram após a Queda do Muro, em 1989.
Isso, somado a parques e praças ao redor, resultou num cotidiano vibrante nesses dois distritos: de dia, comércios de bairro, restaurantes turcos e marcas locais abrem as portas. Noite adentro, a vida boêmia pela qual Berlim é conhecida mundialmente toma a região: bares e “späts” (lojas de conveniência 24 horas, típicas de Berlim) ficam lotados com os mais variados tipos de tribos, enquanto clubes mundialmente famosos como Berghain, Tresor e KitKat reúnem pessoas em filas que tomam as calçadas por horas.
‘Amazon Tower’ é mal recebida por berlinenses
Embora a Amazon aposte na conclusão do EDGE East Side Berlin como um projeto de longo-prazo para os planos da companhia na capital alemã, os moradores da região rejeitaram o projeto.
“A torre é o símbolo de que estamos indo na direção errada”, declara Gabriel Fortenbacher, um dos organizadores do “Berlin vs Amazon”, principal movimento local contra o novo arranha-céu da Amazon. “A cidade está caminhando para a direção do desenvolvimento sem investimento público.”
O grupo surgiu em 2019 e, hoje, conta com 30 integrantes responsáveis por convocar reuniões com moradores no bairro, disparar newsletters e promover ações. Ao final de abril passado, 150 pessoas se reuniram em frente à construção para protestar contra o prédio.
O motivo que leva o grupo e moradores a se posicionar contra o edifício é basicamente um: receio contra o aumento dos preços em Berlim, velha conhecida vítima do processo de gentrificação — fenômeno urbano onde a alta nos valores dos aluguéis, por exemplo, resulta no encarecimento do custo de vida, levando à expulsão dos antigos moradores por novos residentes, com maior poder aquisitivo.
Em Friedrichshain, esse processo já ocorre há anos, reforçando o título de bairro “queridinho” da cidade. Segundo a plataforma imobiliária digital Immobilien Scout 24, os preços de aluguéis de apartamentos na região subiram 34,5% na comparação entre o segundo trimestre de 2019 e o mesmo período deste ano, acima dos 29,1% registrados na média de toda Berlim.
Não apenas isso: os moradores temem reprisar um processo conhecido em todas as regiões onde gigantes da tecnologia se instalaram, como São Francisco e Londres. Em todas, além do aumento do custo de vida, a desigualdade de renda é parte permanente da passagem.
“No Vale do Silício, as consequências drásticas do urbanismo tecnológico sem restrições estão se tornando evidentes: os preços dos aluguéis, a falta de moradia e as disparidades de renda estão explodindo”, diz o grupo Berlin vs Amazon em manifesto. “A Amazon ameaça exacerbar a situação já tensa em Berlim.”
A Amazon ameaça exacerbar a situação imobiliária já tensa em Berlim
Grupo Berlin vs Amazon
Fortenbacher, no entanto, reconhece que é difícil convencer a gigante da tecnologia a deixar o EDGE East Side Berlin. Por isso, já aceitando provável derrota nessa disputa, o grupo elaborou em junho deste ano uma carta-manifesto em que se fazem 14 exigências à Amazon. Batizados de “princípios de liderança”, os itens pedem melhores condições de trabalho aos empregados da empresa; permitir a sindicalização dos funcionários da Amazon na Europa; atingir a descarbonização completa dos produtos e cadeia de suprimentos até 2030; abandonar o modelo de negócio baseado no consumo, promovendo um “encolhimento” da empresa; parar com a evasão fiscal a níveis municipal, estadual, nacional e internacional; combater a gentrificação ao apoiar o mercado local; encerrar contratos com polícias, militares e forças de segurança; e desmembrar o negócio da Big Tech entre empresas independentes.
“Nós reconhecemos que isso vai tornar difícil para a Amazon ser lucrativa. Que pena!”, diz, de forma irônica, a carta do grupo, que se diz solidário com o movimento global Make Amazon Pay (“Faça a Amazon pagar”, em tradução livre), contra a relação da companhia com direitos trabalhistas. “Só com esses princípios realizados é que a empresa vai ser bem-vinda em Berlim. A comunidade não vai aceitar nada menos.”
A Amazon, porém, mantém inalterados os planos. Ao Estadão, a companhia afirma que não é sua a responsabilidade pelo problema imobiliário de Berlim, que sofre com a “atratividade” de pessoas e companhias de todos os lugares do mundo. “A Amazon não conseguirá resolver esses desafios sozinha, mas podemos fazer a nossa parte tentando ser uma boa vizinha”, declara.
Como exemplos de boas ações da empresa no país alemão, a Amazon afirma que cede suas estruturas para “promover o voluntariado” e para apoiar “causas sociais”. Além disso, a companhia americana afirma que faz doações a diversas organizações locais, como Berliner Tafel (de doações de alimentos), Alliance4Ukraine (em apoio à Ucrânia), One Warm Winter (campanha do agasalho) e outras.
Ainda, a empresa afirma que a construção do prédio passou por uma avaliação de todas as etapas administrativas da cidade, que, desde 2004, possui um plano de desenvolvimento em vigor para a região — desde então, outros megaempreendimentos surgiram, como a Mercedes-Benz Arena e o shopping East Side Mall, vizinhos da Amazon Tower. “Todos os órgãos que precisam estar envolvidos na decisão de implementar um projeto de construção desse tipo participaram das decisões, apoiaram-nas e as aprovaram”, diz a nota.
Próxima San Francisco
O principal receio dos críticos da Amazon Tower é que o empreendimento contribua para que Berlim se torne “a próxima São Francisco”, em referência à cidade americana, onde há os principais escritórios das Big Techs e outras gigantes do setor.
Lá, a comunidade local, onde vivem comunidades de latinos, asiáticos e afroamericanos há décadas, foi expulsa do centro da cidade, tomado por empreendedores e desenvolvedores da área de tecnologia. Hoje, a região é um dos metros quadrados mais caros dos Estados Unidos, vê crescer empreendimentos imobiliários para esses novos habitantes e, sobretudo, abriga contrastes sociais após o “boom” do mercado de tecnologia nos últimos 15 anos.
“É por isso que cidades como Berlim apontam para o Vale do Silício e dizem que não é isso que querem para sua cidade. Porque elas sabem que, se houver grandes empreendimentos emblemáticos, isso vai ter um efeito material”, explica a pesquisadora suíça Katja Schwaller, doutoranda pela Universidade Stanford e autora do livro “Technopolis”, sobre o espaço urbano de São Francisco. “Essas empresas são agentes muito poderosos.”
As pessoas sabem que, se houver grandes empreendimentos emblemáticos, isso vai ter um efeito material
Katja Schwaller, pesquisadora da Universidade Stanford
A pesquisadora cita também que há incentivos de governos locais para que essas companhias se instalem nas cidades, incluindo benesses fiscais para atrair o dinheiro dos poderosos envolvidos com o mercado de tecnologia. O efeito para o cidadão, no entanto, nem sempre é positivo, diz ela: “Essas grandes empresas podem acabar prejudicando a infraestrutura pública”.
Katja dá um exemplo recente desse enfraquecimento em São Francisco: com desinvestimentos em transporte público, o Uber consegue ganhar mais espaço ao oferecer seu modelo de negócio como alternativa na cidade. “O efeito disso é que o transporte público fica ainda mais sem investimentos”, aponta.
Katja, no entanto, espera que Berlim não se torne a “próxima São Francisco”. “Espero que Berlim tenha melhores leis trabalhistas, sindicalização e um melhor processo de planejamento público. Muitos fatores devem ajudar a cidade alemã a não se vender completamente a essas empresas e a mitigar esses efeitos”.
Fortenbacher concorda. “Mas eu diria que partes de Berlim podem se transformar. É o que parece que estão fazendo em Friedrichshain ou em partes de Kreuzberg”, diz.
Tenho mais esperança de que possamos criar algum tipo de movimento com o objetivo de abordar algumas dessas questões sociais mais amplas que são representadas pela Amazon Tower
Gabriel Fortenbacher, manifestante do grupo Berlin vs Amazon
Google recua de novos campus em Berlim
Aparentemente exagerado, o otimismo do grupo de Fortenbacher ao exigir demandas grandiosas da Amazon tem precedente: os moradores de Berlim já ganharam uma batalha contra uma gigante da tecnologia americana, o Google. A vitória é considerada um referencial mundial na lutra contra o impacto das Big Techs no planejamento urbano das cidades.
Em 2016, o Google anunciou um escritório de 36 mil metros quadrados dedicado a startups em Kreuzberg, o bairro vizinho de onde se ergue hoje a Amazon Tower. O prédio do Google for Startups foi alvo de protestos de moradores (que inclui o pessoal do que viria a ser o “Berlin vs Amazon”). O motivo é o mesmo: o empreendimento iria contribuir com a subida dos preços dos aluguéis, expulsão de comércios tradicionais e aumento do custo de vida.
Após pressão, em 2018, o Google desistiu do projeto e cedeu o espaço para organizações sociais. “Desde o início, nossa meta com o campus não era apenas criar um espaço para startups, mas também abrir o local para organizações sociais”, declarou o porta-voz da companhia na Alemanha em declaração à imprensa na época.
Essa reedição imobiliária de Davi e Golias torna o pessoal do Berlin vs Amazon e outros berlinenses mais otimistas sobre como devem se comportar as Big Techs no país, cuja capital se tornou um dos principais pólos da Europa para startups — é o terceiro maior mercado, atrás de Reino Unido e França.
“O caso do Google foi provavelmente uma escala um pouco menor, mas mostrou que é possível. Podemos ganhar alguma coisa, mas não vamos derrotar a torre”, diz Fortenbacher, citando os bilhões de euros que seriam desperdiçados após a construção do prédio, em fase final. “Talvez consigamos fazer com que a Amazon reduza suas operações ou fazer algumas concessões quanto ao funcionamento da torre. Mas tenho mais esperança de que possamos criar algum tipo de movimento com o objetivo de abordar algumas dessas questões sociais mais amplas que são representadas pela Amazon Tower”, diz.
*Repórter foi bolsista do Internationale-Journalisten Programme (IJP), programa de intercâmbio para jornalistas;
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