A Apple enfim revelou nesta segunda-feira, 10, qual é a estratégia da empresa para a inteligência artificial (IA), um campo no qual as companhias de tecnologia disputam para desenvolver produtos e serviços que possam ser rapidamente adotados por usuários. Os anúncios foram realizados na maior conferência da empresa, a WWDC 2024 (leia mais aqui), e mostraram que a gigante entrou na corrida da inteligência artificial sem contar com uma “superinteligência artificial”.
O plano da fabricante do iPhone tem pontapé com a plataforma Apple Intelligence. O nome é uma brincadeira com a sigla “AI”, que se refere a “inteligência artificial” em inglês. Como se a própria Apple fosse boa demais para usar o mesmo termo que o mercado de tecnologia vem adotando há meses.
A estratégia vai introduzir recursos de escrita e revisão de textos, geração de imagens e uma Siri (a assistente de voz do iPhone) reformulada. O Apple Intelligence vai estar disponível partir do fim deste ano para usuários com os dispositivos mais novos da marca – veja a lista aqui.
O mais importante a saber é que a Apple Intelligence não é “superinteligência artificial”, como a de outros rivais. Ou seja, a empresa não possui um chatbot capaz de fazer um pouco de tudo, de buscas na internet para responder perguntas simples a desenvolver códigos de programação e criar vídeos.
É uma estratégia oposta à de nomes como OpenAI e Google, que, no mês passado, revelaram seus novos modelos de IA. Nos dois casos, foi possível ver IAs “multimodais”, ou seja, modelos parrudos que compreendem e formulam respostas em diferentes “modos” (ou seja, vídeo, texto, áudio e imagem). Uma das principais revelações da startup liderada por Sam Altman é a de que o GPT-4o compreende vários formatos de arquivo em um único algoritmo poderoso - anteriormente, o sistema precisava, por exemplo, de três IAs separadas para responder perguntas em áudio.
O que se viu parece ser um passo que parece nos aproximar do filme “Ela” (2013), com sistemas complexos, mas humanos e personalizados conforme os hábitos de cada usuário.
A Apple indicou preferir outro caminho. A ausência de uma “super IA”, isto é, um chatbot faz-tudo, pode ter assustado investidores, que pressionam para que a fabricante aperte o passo para acompanhar a corrida – as ações da companhia caíram 2% após os anúncios desta WWDC 2024. É possível entender a escolha dependendo de como se olha para ela.
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Primeiramente, um chatbot faz-tudo mal desenvolvido, às pressas, pode arranhar a reputação da empresa. Para esse tipo de tecnologia funcionar com bilhões de dispositivos pelo mundo diariamente, são necessários tempo e dinheiro. O Google vem cometendo erros com o Gemini, prova de que esse é um campo ainda tortuoso. Nesse assunto, o CEO da Apple, Tim Cook, declarou ao Washington Post após a WWDC 2024: não é possível evitar completamente alucinações e erros das IAs.
Segundo, a Apple preferiu apostar no “menos é mais”. Em vez de super IAs, o sistema da empresa vai utilizar diversos modelos de inteligência artificial para cumprir tarefas específicas no sistema. E alguns deles são da própria Apple, com dados obtidos pela própria companhia e armazenados em centros de dados próprios.
Antes da explosão do ChatGPT, em novembro de 2022, o campo da IA funcionava sob essa perspectiva: modelos de IA específicos podem ser mais eficientes e econômicos. No entanto, a OpenAI, obcecada por desenvolver uma inteligência artificial geral (AGI, na sigla em inglês), um sistema de capacidade superior à humana (como visto na ficção-científica), colocou todo o campo da tecnologia na direção de algoritmos ultrassofisticados, treinados com volumes quase inimagináveis de dados.
Depois de um ano de gastos e testes, parte do campo da IA, incluindo cientistas e empresas, passou a notar que modelos menores podem ainda ser bastante importantes para tarefas específicas. Todas as grandes empresas do setor já trabalham com versões mais magras de suas IAs. Nesta segunda, a Apple revelou um modelo de linguagem (LLM) com apenas 3 bilhões de parâmetros (conexões entre palavras expressadas matematicamente). A título de comparação, especula-se que o GPT-4o, lançado em maio passado, tenha mais de 200 bilhões de parâmetros.
A opção faz sentido para quem quer rodar IAs diretamente no celular, como a Apple deseja, mas também é uma maneira mais rápida e econômica de aparecer na disputa. E isso leva ao terceiro ponto para entender o que a Apple anunciou.
Ao apostar em uma parceria surpreendente com a OpenAI (a fabricante americana não é conhecida por firmar negócios com outras empresas da área, preferindo desenvolver soluções dentro de casa), a Apple “terceiriza” dores de quaisquer erros e alucinações criados pela inteligência artificial do ChatGPT. Se der certo, a empresa pode dizer que oferece a melhor solução do mercado aos seus usuários e clientes, sem que estes se sintam de “fora” da corrida da IA.
É por isso que o Apple Intelligence precisa ser visto como um “cinto de utilidades” pelo qual a companhia poderá implementar não apenas os seus modelos, como também os de parceiros. É uma estratégia muito comum no mercado corporativo de serviços em nuvem, no qual as gigantes da tecnologia, como Microsoft e IBM, podem oferecer algoritmos de terceiros para suprir necessidades específicas de clientes. Agora, o cliente é qualquer pessoa com um iPhone na mão.
Em março, circulou a informação de que a Apple negociou com o Google para colocar o Gemini em seu cinto de utilidades, mas parece que a empresa de Tim Cook encontrou resultados melhores com o ChatGPT.
No entanto, a Apple não descartou na apresentação trazer mais IAs de terceiros para o Apple Intelligence. Se isso acontecer, abre espaço para que outros modelos amplos de linguagem (LLMs, tecnologia que fornece a infraestrutura para a inteligência artificial moderna acontecer), com fins específicos, cheguem ao sistema. E isso pode beneficiar mais companhias, como a Meta, a Anthropic, a Mistral, a Perplexity AI e a Character AI (do brasileiro Daniel de Freitas).
Estratégia para ganhar tempo
Ainda não está claro se a plataforma Apple Intelligence, que vai abrir espaço para que modelos de IA do mercado entrem no iPhone, é uma estratégia de longo prazo ou se é apenas uma aposta para que a Apple ganhe tempo e desenvolva uma solução caseira.
Se for a primeira opção, há a possibilidade de a loja App Store se tornar um espaço onde desenvolvedores podem inserir seus modelos e publicar apps de IA. Essa é uma forma de rapidamente aumentar a monetização em suas próprias plataformas, decisão que agrada investidores ansiosos em ver a receita da Apple crescer nos próximos anos.
A segunda alternativa é apenas uma maneira de entrar na corrida da IA, mas sem aceitar os termos do jogo atual: criar “superIAs” e colocá-las no mercado antes de estarem prontas.
Tradicionalmente, a Apple sempre foi em busca de parcerias quando sabia que estava para trás em alguma inovação. Foi assim com o Google Maps, app que era nativo no iPhone até 2012 e, então, a companhia lançou um sistema próprio de mapas e recebeu uma enxurrada de críticas pela má qualidade do serviço, com ruas e rotas erradas – esse é um dos maiores fracassos recentes da empresa, que demorou anos para conseguir desenvolver um app decente (e que ainda hoje segue abaixo da qualidade do rival).
Ou, ainda, com aos processadores da Intel, cujos chips foram utilizados nos computadores Mac até 2020. Desde então, a companhia desenvolve uma nova linha de semicondutores de silício (Apple Silicon) com mais velocidade e menor consumo de energia – aqui, a transição da rival para uma solução própria é considerada um dos maiores sucessos recentes da Apple.
Se esse histórico se mantiver, pode ser só uma questão de tempo para a Apple lance sua própria inteligência artificial “faz-tudo”. Mas, até lá, usuários vão poder desfrutar do ChatGPT dentro do iPhone. O que gera dúvidas é se a Apple vai alcançar os rivais com uma estratégia que não mergulha de cabeça na tecnologia da inteligência artificial.
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