Pouca gente percebeu mas, nos últimos anos, as gigantes da tecnologia se transformam, também, em empresas de saúde. Primeiro, elas começaram a desenvolver gadgets vestíveis (wearables) que monitoram sinais vitais durante o dia inteiro. Depois, com os dados armazenados, passaram a sugerir medicações e tratamentos, por exemplo.
O que se desenha é uma batalha silenciosa por um mercado altamente lucrativo: o da saúde. Os concorrentes não poderiam ser menos poderosos e a atenção final do consumidor é dividida entre as Big Techs e outras empresas mais tradicionais, como as redes Walmart, CVS e Walgreens nos EUA.

O mercado de saúde nos EUA representa uma parcela significativa do seu PIB. Em 2021, por exemplo, os gastos do setor no país chegaram a quase 18% do PIB.
Isso significa mais dinheiro e mais foco da indústria, que passou a se dedicar a esse mercado, explica Fábio Miranda, coordenador do curso de graduação em Ciência da Computação do Insper. “Na fase que veio lá com o Apple Watch, em 2015, os dispositivos [que monitoram a saúde] passaram por uma evolução igual a dos smartphones”, diz. “Nessa segunda geração, as empresas já tinham isso em mente, até porque tem registros de que há sete anos a Apple já testava, por exemplo, um sensor de glicose do sangue não invasivo”.
“A evolução foi exponencial. Cada nova geração de gadgets vem com sensores mais sofisticados e mais precisos”, afirma.
Leia também
Os americanos, no entanto, não estão sozinhos nessa, principalmente quando o assunto são os wearables. Miranda diz que a indústria começou a perceber essa demanda aos poucos lá em 2010, quando a Fitbit, uma empresa de smartwatches para usar enquanto pratica esportes, prosperou.
“A Samsung vem logo em seguida, com [os dispositivos] que foram lançados no começo da década de 2010″, diz Miranda. “Nesse momento, [os fabricantes] estavam lá mais pelo espírito da inovação, para criar uma base de dispositivos”.

Gadgets nos hospitais
Como um hospital que atende centenas de pacientes com os mais diversos diagnósticos aplicam as funcionalidades desses wearables? “Quando a gente pensa nesses dispositivos, pensamos em interoperabilidade”, diz Claudia Laselva, diretora de serviços hospitalares e de práticas assistenciais do Hospital Albert Einstein. “Então, se eu tenho uma informação que vem de um dispositivo, como vou capturá-la? Como vou relacionar essa informação? Esses pontos são muito importantes de serem discutidos a respeito de todos os smartwatches de todas as marcas”.
“A ideia não é o paciente ficar com esse monitor e a gente lá com a caneta anotando esses sinais vitais. Queremos fazer de uma forma automatizada, como hoje já temos nos nossos monitores dentro da instituição”, afirma Laselva. Essa automatização, inclusive, evita erros de transcrição.
Os especialistas em gadgets e os médicos que os usam em consultório citaram uma miríade de benefícios do monitoramento remoto de pacientes que só foram atingidos pela “popularização” desses aparelhos.
Entre as novas possibilidades estão o fácil acesso ao acompanhamento de pacientes em casa, clínicas ou instituições de longa permanência, e a detecção precoce de alterações no quadro clínico, o que permite intervenções rápidas e reduz riscos. Além disso, o hospital ganha em termos de eficiência ao conseguir focar em casos de alta complexidade e reduzir internações desnecessárias.

As instituições brasileiras ainda buscam validar o uso dos aparelhos tanto por meio de estudos próprios quanto regulamentações de órgãos como a Anvisa, por conta da precisão dos dados recolhidos. “A gente sabe que nos Estados Unidos já tem vários dispositivos que são validados pelo FDA, como os modelos mais recentes do Apple Watch, que já oferecem monitoramento de frequência cardíaca e eletrocardiograma. Modelos da Samsung Galaxy Watch também já foram validados”, diz Laselva.
A primeira certificação que uma tecnologia da Apple teve para monitorar a saúde foi em 2018, quando lançou a fabricante do iPhone lançou o Apple Health Records, que permitiu a diversos hospitais parceiros que tivessem registros dos pacientes. Um ano depois, a empresa estendeu esse recurso para qualquer prestador de serviço de saúde no país que utilize esse sistema.
Agora, pacientes com iPhone podem baixar e visualizar seus registros médicos, inclusive aqueles com medicamentos, imunizações e resultados de laboratório em um mesmo app.
Um exemplo brasileiro de como a tecnologia pode ser agregada ao monitoramento de pacientes acontece no Hospital das Clínicas (HC). O projeto de maior destaque da instituição envolve pacientes transplantados de medula óssea, contou Marco Bego, diretor executivo do InRad e diretor de inovação do InovaHC.
“O projeto de monitoramento remoto de pacientes transplantados de medula já tem três anos, e agora estamos com segurança para avançar para o próximo passo e levar o paciente para casa”, explica. “Fizemos um trabalho de validação completo: primeiro, verificamos as medições sem os sensores, depois com os sensores dentro do hospital no mesmo paciente, e por fim, testamos com pacientes apenas com os sensores ainda dentro do hospital, antes de permitir que fossem para casa”.
Segundo Bego, a maior dificuldade no projeto aconteceu quando o nível de precisão dos dispositivos precisava ser “altíssimo”. A falta de material produzido no Brasil também dificultou o processo. “Quando precisamos de mais profundidade no uso, precisamos buscar suporte fora do país”, afirma. “Os fornecedores locais muitas vezes não têm conhecimento técnico necessário”.
O HC usou Samsung Galaxy Watch para monitorar os pacientes. O custo dos aparelhos não é o fator que mais encarece o programa. “O problema maior está nos custos adicionais: setup, treinamento e adaptação da infraestrutura”, diz Bego.

Sincronizar os dispositivos do hospital com os dos pacientes também foi um desafio. “Alguns celulares dos pacientes não suportavam a tecnologia necessária para o monitoramento, pois eles funcionam como um hub para os sensores. Isso gerou um custo extra com a necessidade de fornecer celulares mais modernos”.
A técnica usada pelo HC se mostrou eficiente, mas ainda falta um modelo estruturado de monitoramento remoto. “Precisamos ter uma central estruturada para responder imediatamente caso algo aconteça. Hoje, não temos essa estrutura nem no SUS nem na maioria dos hospitais privados”.
Uma pesquisa que também mede a eficiência no monitoramento de pacientes está em andamento no Hospital Beneficência Portuguesa (BP). Nesse caso, Graziela Dal Molin, oncologista do BP, acompanhou - de abril de 2022 a outubro de 2024 – mulheres com câncer de mama metastático.
Por meio de aplicativos e smartwatches, a equipe do hospital monitorou diariamente a frequência cardíaca, oxigenação e uso de medicação prescrita, além de sintomas como dores e perdas de apetite e disposição. Efeitos colaterais do tratamento também puderam ser monitorados.
A combinação do app e dispositivo resultou na comunicação online com as pacientes para esclarecimento de dúvidas e relatos sobre queixas relacionadas ao tratamento. Dal Molin explica que os resultados ainda não foram totalmente finalizados, “mas provavelmente a iniciativa conseguiu motivar e engajar as pacientes quanto às orientações médicas do tratamento, ao mesmo tempo em que melhorou a qualidade de vida”.

Se os dispositivos coletam dados, que por sua vez são usados para sugerir mais produtos para a saúde, há um cenário onde o valor desses dados é tão relevante quanto o dos dispositivos - e as empresas de tecnologia sabem disso. Sérgio Portugal, professor da Pós-Graduação em gestão de Negócios da Saúde da Fundação Dom Cabral, explica que o modelo de negócio das gigantes de tecnologia é baseado em plataformas de soluções, que combina hardware, software e dados processados em nuvem.
“Essas empresas querem erguer muros. A Apple quer erguer muros e fazer sua reserva de mercado. A Samsung, a mesma coisa”, diz Portugal. “O pensamento deve ser de plataforma e soluções, que inclui tanto os aparelhos, os gadgets, quanto o software e os dados coletados e processados em nuvem ou no próprio dispositivo”.

“Se hoje ainda existem algumas limitações [nos aparelhos], há cinco anos elas eram ainda maiores. Dez anos atrás, essa tecnologia quase não existia ou era inacessível devido ao alto custo”, diz Portugal. “Por isso, a adoção de novas tecnologias está diretamente ligada ao seu caso de uso: à medida que surgem aplicações bem-sucedidas, a aceitação pelo mercado cresce, desde que o preço seja acessível”.
Além do conforto – e melhores resultados – para o paciente, os médicos também vão se beneficiar da adoção definitiva desse wearables no futuro, afirma Linamara Rizzo Battistella, professora e doutora do Imrea da Rede Lucy Montoro.
“Quando eu conseguir juntar vários pacientes em uma mesma plataforma, posso identificar se minha intervenção está funcionando, por exemplo”, diz Battistella. “Eu vou conseguir identificar se o paciente está melhor porque ele adaptou uma rotina de exercício, porque ele diminuiu o peso ou simplesmente porque ele toma as medicações com regularidade. Isso me dá condições de saber, quando o paciente volta para consulta, qual é o quadro real que ele vive agora. Tudo isso diminui muito a chance de erro”.