Bill Gates, em conflito com Trump sobre coronavírus, vira alvo da direita

Fundador da Microsoft está no centro de teorias da conspiração propagadas em redes sociais; na vida real, ele é o segundo maior doador da Organização Mundial da Saúde (OMS)

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Por Daisuke Wakabayashi, Davey Alba e Marc Tracy

Em uma palestra de 2015, Bill Gates alertou que o maior risco para a humanidade não era a guerra nuclear, mas um vírus infeccioso que viria a ameaçar a vida de milhões de pessoas. O vídeo dessa palestra ressurgiu nas últimas semanas, com 25 milhões de novas visualizações no YouTube – mas não teve o efeito que Gates provavelmente pretendia. Ativistas do movimento antivacina, membros do grupo conspiratório QAnon e gurus da extrema-direita tomaram o vídeo como evidência de que um dos homens mais ricos do mundo planejava usar uma pandemia para controlar o sistema de saúde global.

Gates, de 64 anos, cofundador da Microsoft e filantropo, tornou-se a estrela principal de uma explosão de teorias da conspiração sobre o surto do novo coronavírus. Em posts no YouTube, Facebook e Twitter, ele está sendo falsamente retratado como o criador da covid-19, como um empresário que está lucrando com a vacina contra o vírus e como participante de um plano covarde para usar a doença para vigiar ou exterminar a população mundial.

Por sua posição firme no combate ao coronavírus (e contra Trump), Bill Gates se tornou alvo de calúnias na rede Foto: NYT

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As acusações bárbaras ganharam força com gurus conservadores, como Laura Ingraham, e militantes antivacina, como Robert F. Kennedy Jr., assim que Gates surgiu como contraponto ao presidente Donald Trump a respeito do novo coronavírus. Por semanas, Gates apareceu na TV, em artigos de opinião e em fóruns do Reddit pedindo políticas de isolamento, expansão dos testes e desenvolvimento de vacinas. E, sem mencionar Trump, ele criticou as políticas do presidente, entre elas a decisão desta semana de cortar os repasses para a Organização Mundial da Saúde (OMS).

As desinformações sobre Gates agora são as mais difundidas de todas as notícias falsas sobre o novo coronavírus rastreadas pelo Zignal Labs, uma empresa de análise de mídia. As falsidades contam mais de 16 mil postagens no Facebook este ano, as quais foram curtidas e comentadas quase 900 mil vezes, segundo uma análise do New York Times. No YouTube, os 10 vídeos mais populares que espalham mentiras sobre Gates, postados em março e abril, somam quase 5 milhões de visualizações.

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Gates, que tem um patrimônio avaliado em mais de US$ 100 bilhões, assumiu efetivamente o papel até então desempenhado por George Soros, o financista bilionário e doador democrata que se tornou o grande vilão da direita. Isso fez de Gates o mais recente indivíduo – junto com o Dr. Anthony Fauci, o principal especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos – a entrar na mira dos gurus da extrema direita que vêm atacando aqueles que parecem discordar de Trump a respeito do vírus.

“Bill Gates pode ser facilmente transformado em meme da crise de saúde porque é uma figura muito conhecida”, disse Whitney Phillips, professora assistente da Universidade de Syracuse que ensina ética digital. “Ele pode funcionar como uma espécie de bicho-papão abstrato”. Isto ocorre especialmente desde que Gates foi mais incisivo em seus comentários sobre a maneira como a Casa Branca vem lidando com o novo coronavírus nas últimas semanas.

“Não há dúvida de que os Estados Unidos perderam a oportunidade de se antecipar ao novo coronavírus”, escreveu ele em um artigo de opinião no Washington Post, em 31 de março. “As escolhas que nós e nossos líderes fazemos agora terão um enorme impacto em quanto tempo os números de casos começarão a diminuir, quanto tempo a economia permanecerá fechada e quantos americanos terão de enterrar um ente querido por causa da covid-19”.

Mark Suzman, executivo-chefe da Fundação Bill & Melinda Gates, o principal veículo filantrópico de Gates, disse que é “angustiante o fato de haver pessoas divulgando informações falsas quando todos deveríamos procurar maneiras de colaborar e salvar vidas”. Por meio de um porta-voz, Gates não quis dar entrevista.

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Empresário é dedicado a iniciativas filantrópicas

Gates, que fundou a Microsoft com Paul Allen em 1975 e a transformou em uma gigante dos softwares, vem dedicando grande parte de seu tempo a iniciativas filantrópicas desde que se afastou da empresa, em 2008. Até 2018, a Fundação Gates tinha doado US $ 46,8 bilhões, tornando-se uma das maiores organizações privadas de caridade do mundo.

A fundação trabalha para distribuir vacinas nos países em desenvolvimento, defende o planejamento familiar por meio da disseminação do uso de contraceptivos e financia o desenvolvimento de culturas geneticamente modificadas. Esses esforços suscitaram acusações infundadas de que Gates estava prejudicando os pobres do mundo com drogas desnecessárias e colheitas nocivas, em uma tentativa de dizimar a população global.

Seu desdém por Trump, com quem se encontrou várias vezes, também se tornou público. Em 2018, surgiram vídeos de Gates contando como Trump precisara de ajuda para distinguir entre o HIV – sigla em inglês para vírus da imunodeficiência humana, que causa Aids – e o HPV – sigla em inglês para papilomavírus humano, uma infecção sexualmente transmissível. “Nas duas vezes, ele quis saber se havia diferença entre HIV e HPV, então expliquei que são coisas bem diferentes”, disse Gates, para os risos da plateia.

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Em janeiro, quando o novo coronavírus começou a se espalhar, a Fundação Gates transferiu US$ 10 milhões para ajudar profissionais de saúde na China e na África. Em fevereiro, Gates voltou a falar sobre a doença, alertando ao periódico científico The New England Journal of Medicine que a covid-19 estava se comportando como o pior patógeno em um século.

Além de escrever o artigo no Washington Post, Gates pediu mais testes generalizados em uma sessão do Reddit chamada “Ask Me Anything” [Pergunte qualquer coisa] no mês passado. Este mês, Gates apareceu no The Daily Show e disse que sua fundação financiaria fábricas para produzir as sete vacinas mais promissoras. Na quarta-feira, a Fundação Gates disse que doaria US$ 250 milhões para conter a propagação da doença – a promessa anterior era de US$ 100 milhões.

A essa altura, as notícias falsas sobre Gates já haviam disparado. A primeira menção a uma conspiração infundada ligando-o ao surto aconteceu em 21 de janeiro, segundo a análise do Times. Foi quando uma personalidade do YouTube associada ao QAnon sugeriu no Twitter que Gates tinha conhecimento prévio da pandemia. O tuite se baseava em uma patente relacionada a coronavírus do Instituto Pirbright, um grupo britânico que recebeu financiamento da Fundação Gates.

A patente não era para a covid-19, mas, sim, para uma potencial vacina contra um coronavírus diferente, que afeta as aves. Mas, dois dias depois, o site conspiratório InfoWars disse, incorretamente, que a patente era para “o vírus mortal”.

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A ideia se espalhou. De fevereiro a abril, as teorias da conspiração envolvendo Gates e o vírus foram mencionadas 1,2 milhão de vezes nas redes sociais e nas transmissões de televisão, de acordo com o Zignal Labs. Segundo a empresa, um número 33% mais alto que a frequência da segunda maior teoria da conspiração: que as ondas de 5G fazem as pessoas sucumbirem à covid-19.

Até herdeiro dos Kennedy divulgou teoria da conspiração

Algumas das teorias se basearam na proximidade entre Gates e Jeffrey Epstein, o financista que foi condenado por tráfico sexual e se matou, dizendo que uma elite global se uniu para criar o novo coronavírus.

As teorias foram amplificadas por pessoas como Kennedy, filho do ex-senador Robert F. Kennedy, que faz campanha contra vacinas na posição de diretor da rede de Defesa da Saúde da Criança. Em sua página do Instagram, Kennedy disse que Gates promove as vacinas para alimentar seus outros interesses comerciais.

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Na terça-feira, Kennedy postou um cartum que mostrava um sorridente Gates com uma seringa nas mãos e a legenda: “Seu corpo, minha escolha”. Kennedy, cujos seguidores no Instagram dobraram para mais de 285 mil desde março, disse em uma entrevista que estava dizendo a verdade sobre o “terrível dano” que as vacinas de Gates infligiram ao mundo.

Em um tuíte de 7 de abril, Ingraham, apresentadora da Fox News, compartilhou uma teoria da conspiração sobre motivos nefastos por trás da cobrança de Gates para rastrear e identificar os infectados pela covid-19. “Rastrear digitalmente todos os movimentos dos americanos é um sonho dos globalistas há anos”, escreveu ela.

Na quarta-feira, depois que Gates disse que o corte nos repasses para a Organização Mundial da Saúde fora uma decisão mal aconselhada, a reação online foi rápida. (A Fundação Gates financia a organização).

Um militante antivacina postou no Instagram um pôster do filme ‘Kill Bill’ com os dizeres: “Kill Bill Gates” [Mate Bill Gates] e pediu que as pessoas inundassem a caixa de comentários da conta do Instagram de Gates. Nesse mesmo dia, quando Gates agradeceu aos profissionais de saúde, recebeu mais de 14 mil comentários. Um deles dizia: “Este vírus é uma mentira deslavada”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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