Dois anos após aos ataques antidemocráticos a Brasília e quatro anos após os incidentes do Capitólio nos EUA, a Meta, gigante dona de Facebook, Instagram e WhatsApp, decidiu encerrar a moderação de conteúdo em suas plataformas - as redes sociais foram apontadas por autoridades e especialistas como propulsores dos dois eventos.
Para Bruna Martins, especialista em direito digital da Coalizão Direitos na Rede, organização que defende os direitos humanos na internet, a guinada é “lamentável” e indica que a companhia de Mark Zuckerberg trata cidadãos não americanos como “meros números”. Ela acredita que ainda é cedo para saber os desdobramentos da mudança no Brasil, mas acredita que a decisão posiciona tanto o executivo como a sua empresa como agentes políticos, longes da imagem de “agentes neutros” que tentaram projetar ao longo dos anos.
Veja os principais momentos da entrevista dada ao Estadão.
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Como você recebe a mudança de política de conteúdo da Meta?
É lamentável a mudança, especialmente depois de a gente ter vivido um ano tão intenso, com mais de 70 eleições ao redor do mundo, onde ficou ainda mais claro que as plataformas não se preocupam como deveriam com a importância de se salvaguardar processos democráticos, eleitores e usuários ao redor do mundo. Ela remove da plataforma pontos muito neurálgicos para a proteção de usuários e discussões online. Esse aceno ao Partido Republicano vem muito por um medo da plataforma de sofrer qualquer tipo de represália do governo americano de maneira geral. Mas não é só isso: é finalmente um momento de alinhamento do próprio Mark Zuckerberg aos republicanos, o que já era previsível.
Desde a primeira eleição do Trump, a Meta adotou supostas políticas mais severas de moderação de conteúdo. Nesse período houve progresso no trabalho da empresa ou o processo de moderação sempre foi ruim?
A gente teve evolução nos últimos anos e, talvez, essas evoluções sejam mais representativas quando a gente fala, por exemplo, do bloqueio de Trump e outros atores que tiveram envolvimento não só no incidente do Capitólio Americano, como em Brasília e o Gabinete do Ódio. Apesar de questões que ainda podem ser melhoradas, vimos uma mudança de atuação, como importância de adequação a novas normas e leis e importância de adequação a decisões judiciais. Agora, a questão é que a gente ainda não detém mecanismos de transparência, que permitam ter essa visão um pouco mais universal das melhorias e do que foi feito nos últimos anos. Os anúncios feitos pelas plataformas têm sido ainda feitos de uma maneira muito tímida, que seguem sendo feitos por meio de blog posts. Não há uma disseminação muito clara sobre as coisas e, quando há qualquer divulgação de atuação ou de atividades entre a plataforma e a autoridade, isso é feito de uma maneira um pouco secreta.
Qual foi o papel do X, de Elon Musk, na decisão de Zuckerberg?
Quando a gente começou a ver o movimento de Musk contra várias outras autoridades ao redor do mundo, parecia que ele estava indo numa bravata um pouco solitária. Talvez, o que a gente estivesse vendo era, de fato, um balão de ensaio ou uma cortina de fumaça em torno de um novo ponto de inflexão na atuação de Big Tech. E era um balão de ensaio justamente pela falta de represália. O Brasil foi um dos países que mais escalou a ideia, mas em termos de represália não houve muitas. Isso foi importante para que a própria Meta se sentisse legitimadas. As nuances entre conteúdos legítimos e conteúdos danosos vão deixar de existir e pode ser que o resultado seja um ambiente online mais danoso e problemático, eu diria. Não é possível saber se as plataformas da Meta ficarão iguais ao X, mas eu diria que não seria uma surpresa caso a gente visse esses espaços tão descontrolados quanto o X, onde a gente tem visto muito conteúdo de extrema direita, muito conteúdo pornográfico e alguns outros conteúdos até sobre automutilação e mutilação.
Como é que você acha que essa mudança de posicionamento pode impactar o Brasil e as relações entre nossas autoridades e as Big Techs?
A gente precisa esperar um pouco para ver. Eu não me surpreenderia, por exemplo, caso o Supremo, nas discussões da constitucionalidade do artigo 19, também passasse a falar de uma espécie de lista de parâmetros para moderação de conteúdos. Essa retirada de medidas, como a checagem de fatos e também a revisão humana, quase que provocam reguladores ao redor do mundo para que a gente pense em parâmetros mínimos de moderação de conteúdo para que sejam implementados a fim de proteção dos próprios usuários. Eu não me surpreenderia caso a gente tivesse essa nova insurgência de governos e reguladores ao redor do mundo pedindo parâmetros mínimos de moderação, pedindo mais transparências sobre medidas de moderação de conteúdo e solicitando a reinstituição de algumas dessas medidas que Zuckerberg eliminou hoje.
Existe a possibilidade das plataformas da meta serem bloqueadas aqui no Brasil?
Depende se elas vão continuar seguindo a linha de cumprir com ordens judiciais e pedidos de leis brasileiras ou não. O que a gente tem até hoje é esse parâmetro, do Musk descumprimento de ordem judicial. E se caso a meta passe a adotar também essa linha de descumprimento de ordem judicial, seria também pouco surpreendente caso o Supremo também fosse na mesma linha de bloqueio das plataformas da Meta. Mas eu acho que toda vez que a gente pensa no bloqueio como uma medida, a gente acaba chegando num momento extremo, o que é lamentável. Estamos vivendo um novo momento, no qual as próprias plataformas se tornam, ou os donos das plataformas, se tornam agentes políticos. E acima de tudo, passam a provocar essas medidas um pouco mais extremas de corpos. A gente precisa entender qual é a motivação política dessas plataformas e também passar a reconhecê-los como atores políticos.
Como você vê o pedido de apoio de Zuckerberg a Trump para reprimir a suposta censura ao redor do mundo?
Quando a própria Meta decide falar dessa falsa dicotomia entre os valores de liberdade de expressão americanos versus as cortes secretas ao redor do mundo, o Zuckerberg está basicamente dizendo que a linha que ele vai seguir agora é a linha americana e que, no fim das contas, o que é decidido ao redor do mundo importa muito pouco se for contrário a esses valores ideais americanos. Para ele, a maioria global ou do sul global importa muito menos. A gente é só uma fonte de receita e vai continuar a ser tratado como um mero número. Acima de tudo, eu acho que é um momento que sedimenta a atuação desses donos das plataformas como atores políticos e não mais como agentes isentos.
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